sábado, 17 de julho de 2010

Os homens do Toyota amarelo com armas pesadas na frente do BC12

Quartel do BC12, onde estava o BCAV. 8423. Vêem-se a porta
d´armas (ao centro) e as torres de vigia. Alferes Garcia e furriel miliciano Viegas, em baixo


Julho de 1975, meados do mês de maior ansiedade, insegurança e dúvidas no BCAV. 8423, em Carmona. Dia 17, é uma 5ª. feira. As escaramuças da cidade continuam a inquietar a guarnição que, porém, continua muito confiante na capacidade de liderança do comandante Almeida e Brito. Estou de serviço, de sargento de dia.
Ao princípio da tarde, o plantão da entrada principal fez-nos sinal: um grupo de militantes da FNLA, com duas metralhadoras instaladas num jeep Toyota amarelo, andava a passar repetidas vezes frente ao BC12, na estrada de asfalto, para o Songo. Ia e vinha e afrouxava a marcha, sempre na frente da porta d´armas, apontando as metralhadoras ao quartel. Os homens estavam agitados, gesticulavam muito, gritavam em dialecto inentendível, soltavam slogans revolucionários que nós conhecíamos de ouvido! Em provocação iminente!
Ficámos de alerta imediato e o piquete, que por ali estava perto - disperso entre a parada, as casernas e o bar dos praças -, rapidamente se formou, em ordem de combate. 
Avisei o alferes Garcia, o oficial de dia - que estava no primeiro piso do edifício do comando. Desceu, num instante: «Já sabem o que temos de fazer...», disse ele, enquanto ajustava o cinturão, de G3 pendurada no braço esquerdo e já de culatra atrás.
Tomámos posições de defesa. À Walter de serviço, juntei a G3, as cartucheiras, granadas defensivas e ofensivas. Operadores e municiadores das metralhadoras pesadas assumiram os seus lugares. O suor frio, suor frio em tarde de imenso calor africano, escorria-nos cara abaixo e molhava-nos o camuflado! Sentia-se uma ansiedade enorme, a gelar-nos a barriga!
«Como é?! Aguenta-se?...», perguntei ao alferes Garcia, também ele armado até aos dentes e de novo no piso de cima - já com um ou dois grupos do PELREC, que rapidamente se lhe juntaram. Não me recordo do nome deles.
«Vamos ver!... Ó pá!!!... Calma, sem fogo!...», respondeu-me ele, com a habitual firmeza, sem uma hesitação. «Manda reforço para as traseiras, tomem posições...».
Os homens do Toyota amarelo voltaram a passar e, agora, como que a provocar-nos, de olhar esgaseado e insolente, pararam em frente à guarita do plantão, com o jeep virado para a porta principal e de metralhadoras levantadas, sugerindo que iriam disparar. «Temos merda!... Filhos da p...», disse um dos militares da guarda. Não me recordo do nome, mas lembro-me dele a desabotoar a camisa do camuflado, a ofegar..., como quem oferece o peito às balas! 
Eu, emocionalmente controlado (julgo...), passei o dedo indicador direito pelas calças do camuflado, aligeirando-lhe a humidade do suor e da ansiedade. E passei-o no gatilho da G3, apontada para a estrada.
«Vê-se alguma coisa no capinzal?!...», perguntei, pela rádio, ao Garcia - que no primeiro piso coordenava aquele dramático momento. «Nada!... Tudo em ordem!...». Atrás do capinzal, sabia-se lá?!!!!, poderia estar uma multidão de homens, para nos atacar. Havia e sentiam-se latentes as ameaças dos vários ontens, ameaças de bombardeamento ao BC12, de cerco ao quartel..., de vinganças que se multiplicavam em ódios incontrolados, se não fossem dadas armas à FNLA.
Os homens do Toyota amarelo, uns cinco ou seis..., agitavam as armas no ar e continuavam com gritos em dialecto inentendível, visivelmente perturbados. Mesmo na frente da guarita do plantão, a dois/três metros do nosso companheiro de serviço, que ali estava fragilizado e indefeso. Gargalhavam muito, como doidos, e empurravam-se uns aos outros, em histeria que nos engravidava de incógnitas!
«Posição?!...», perguntou-me o Garcia.
«É à primeira!!..», disse-lhe eu, sem tirar o dedo do gatilho. «Estão na mira, é rajada, f...-los todos». E passei o indicador direito pelo gatilho da G3, umas duas, três, quatro vezes, como que lhe aveludando a rapidez do tiro. A mente fervilhava de emoções e adivinhava a cadência: «Trrrrrrrááa-tá-tá-tá... Trrrrrráááááá-tá-tá-ta!!!...». E já (ante)via o sangue a esguichar-se dos corpos que tombariam! Já ouvia explosão das granadas defensivas a espartilhá-los pelo ar. Já via a bandeira Portuguesa a continuar tremulante, no mastro da porta d´armas do quartel. O armamento pesado a espantar os nossos fantasmas, varrendo o inimigo. Iam ser momentos épicos! Tudo isto nos motivou para o «sem medo» daquela hora de iminente tragédia.
Mas tínhamos de ser muito cautelosos, na linha de fogo estava um dos nossos - o soldado de plantão, amargurando-se no desconforto e fragilidade da guarita.
Estranhamente, os homens do jeep Toyota amarelo deram volta e foram-se embora! Sempre a gargalhar, a gritar, histericamente, como doidos.
«Liambados!...», disse um dos nossos homens, de quem também não lembro o nome, mas de quem recordo vê-lo a passar o lenço verde na testa suada de frios e a soltar vernáculos aqui indizíveis.
Os minutos seguintes foram de intenso dramatismo. Os plantões das torres do edifício do comando, porém e ainda bem..., não divisavam nada no horizonte que se galgava para além do capinzal!! Até onde os seus olhos viam!!! Ficámos mais descansados. E mais descansados ainda quando o comando Português interpelou o Estado Maior Unificado - que coordenava as Forças Militares Mistas. O que falaram, não sei. Mas a guarnição tranquilizou-se.
Os homens do Toyota amarelo, afinal - veio a saber-se... -, estavam embriagados e teriam agido por conta própria. Nunca mais se soube deles.
À noite, no refeitório dos praças, na tonificante refeição que nos consolou os estômagos e entre a coloquialidadde de uma garfada e o sabor refrescante de uma Nocal, confidenciou-me o Garcia, em «segredo militar»: «A saída para Luanda é nos primeiros dias de Agosto». Assim viria a ser.
«E se houvesse tiros, pá?!...», perguntei eu, a olhá-lo com maneio de cabeça, de cima para baixo e de baixo para cima. «E se houvesse tiros?!...».
«Fooooooogo!!!!...fogo, fogo, fogo!!!!», gargalhou o Garcia, cofiando o bigode que ao tempo lhe adornava o seu rosto de coragem e, acredito eu - tenho a certeza... -, absolutamente seguro que os nossos homens não hesitariam um momento. Assim tivesse de ser!

9 comentários:

monteiro disse...

Ainda me lembro desse dia. Não passei por esses momentos de grande tensão, até porque a minha guerra estava na secretaria, quando soube desse episódio já tudo estava bem calmo. De qualquer modo, se viesse a descambar, iriamos passar por momentos complicados. Teriamos HOMENS de combate que estou certo tudo fariam para levarem a bom porto a nossa bandeira que içada na torre mais alta do BC12 continuaria bem defraldada para dizer que ali estavam os bravos do BCAV 8423.
Ex Furriel Monteiro

Santos disse...

Foi dia filho da mãe, mas eu só soube mais tarde na caserna quando os atiradores contaram, a coisa parece que estava preta... O Soares, que era atirador, contou umas façanhas desse dia, pois ele estava na casa da guarda coma G3 apontada para fora. O engraçado se eu me lembro bem é que quase ninguém deu por nada no quartel, malta continuou a fazer o que estava a fazer e ninguém deu por nada mas aquela malta dos atiradores era lixada e não tinha medo de nada, o alferes Garcia e os furrieis Neto e Viegas eram danados, o Neto então era tudo para a frente. Boa malta, tenho saudades.... abraços para todos os cavaleiros do norte.
estive a ver os que já morreram e fico triste, mos eram todos boa malta.

Anónimo disse...

Essas malta que por aí anda na política actual a lanzoar devia ter passados por estas... para ver se aprendia a ter respeiro pelos homens que deram sangue e vida por Portugal...
C. Silva

CLIP - Rio Maior disse...

Recordo-me muito bem desta entrada no BC 12. Em 1972 a 1974, Fiz serviço de operador Cripto no 1º piso do quartel. Nunca houve problemas alguns com ninguém; nem com brancos, nem com negros. Alimentavamos os nativos nas cantinas militares que ficavam nas trazeiras (do lado de dentro) do quartel. Estava aí instalada CCS e a Companhia 211. (operacional).

CLIP - Rio Maior disse...

Recordo-me muito bem desta entrada no BC 12. Em 1972 a 1974, Fiz serviço de operador Cripto no 1º piso do quartel. Nunca houve problemas alguns com ninguém; nem com brancos, nem com negros. Alimentavamos os nativos nas cantinas militares que ficavam nas trazeiras (do lado de dentro) do quartel. Estava aí instalada CCS e a Companhia 211. (operacional).

CLIP - Rio Maior disse...

Recordo-me muito bem desta entrada no BC 12. Em 1972 a 1974, Fiz serviço de operador Cripto no 1º piso do quartel. Nunca houve problemas alguns com ninguém; nem com brancos, nem com negros. Alimentavamos os nativos nas cantinas militares que ficavam nas trazeiras (do lado de dentro) do quartel. Estava aí instalada CCS e a Companhia 211. (operacional).

CLIP - Rio Maior disse...

Recordo-me muito bem desta entrada no BC 12. Em 1972 a 1974, Fiz serviço de operador Cripto no 1º piso do quartel. Nunca houve problemas alguns com ninguém; nem com brancos, nem com negros. Alimentavamos os nativos nas cantinas militares que ficavam nas trazeiras (do lado de dentro) do quartel. Estava aí instalada CCS e a Companhia 211. (operacional).

CLIP - Rio Maior disse...

Recordo-me muito bem desta entrada no BC 12. Em 1972 a 1974, Fiz serviço de operador Cripto no 1º piso do quartel. Nunca houve problemas alguns com ninguém; nem com brancos, nem com negros. Alimentavamos os nativos nas cantinas militares que ficavam nas trazeiras (do lado de dentro) do quartel. Estava aí instalada CCS e a Companhia 211. (operacional).

CLIP - Rio Maior disse...

Recordo-me muito bem desta entrada no BC 12. Em 1972 a 1974, Fiz serviço de operador Cripto no 1º piso do quartel. Nunca houve problemas alguns com ninguém; nem com brancos, nem com negros. Alimentavamos os nativos nas cantinas militares que ficavam nas trazeiras (do lado de dentro) do quartel. Estava aí instalada CCS e a Companhia 211. (operacional).