sábado, 31 de outubro de 2009

Cinema no Batalhão, a rodar os golos de Eusébio....

O O Clube do Quitexe, onde decorriam as sessões de cinema do BCAV. 8423,
em finais de Outubro de 1974. Eusébio, na foto de baixo

Eusébio?! O que terá Eusébio a ver com os Cavaleiros do Norte? Bom, Eusébio marcava muitos golos e, na altura já no pré-ocaso da brilhantíssima carreira, passava nos cinemas o filme «Pantera Negra», já com algum atraso de estreia. Um filme que lhe endeusava os feitos futebolísticos e nos apaixonava a nós - benfiquistas, ou não. Mas portugueses.
É dessa altura o já aqui falado travestismo do (furriel) Viegas, que se deixou em apalpar nos joelhos por um jovem oficial armado em galã, no escuro do cinema - o Clube do Quitexe (foto de cima).
O filme rodou por toda a área de acção do BCAV. 8423, depois de passar no Quitexe, destinando-se primeiramente aos tropas e depois também à população civil. Era, no fundo, uma actividade de acção psicológica pura e lembro, dessa altura, o entusiasmo com que um filme de cow-boys foi visto no aquartelamento de Zalala - no refeitório. Foi a única vez que lá dormi e, depois de longas horas de cervejas, pão e manteiga, pós-filme, dormitámos umas duas horas até ao regresso ao Quitexe. Arrancámos logo ao alvorecer, com os cuidados do costume mas apanhando um susto perto da Fazenda Alegria.
Ouviram-se tiros mas eram de caçadores... menos cuidados! Lá rebolámos nós, a ganhar posições nas laterais da picada, afinal para e por.. nada!
Soube este verão que, por aquelas bandas, nos duros primeiros anos de 60, o agora PSP reformado José Martinho, aqui vizinho, por lá sentiu os agravos de matança... - Era ele soldado de uma companhia de caçadores.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Apresentação de 6 elementos da FNLA às autoridades portuguesas

O PELREC, a 16 de Outubro de 1974. Em cima, da esquerda para a direita: Cordeiro,
Messejana, Florêncio, Soares, António (?), Ezequiel, Marcos, Dionísio, Caixarias
e Florindo (enfermeiro). Em baixo: Vicente (já falecido), Viegas, Francisco, Leal (falecido),
Mendes (?, transmissões), Hipólito, Aurélio (Barbeiro), Madaleno e Neto.
Clicar na foto, para a ampliar

Os primeiros elementos armados da FNLA apresentaram-se voluntariamente no Quitexe fez ontem 35 anos - a 29 de Outubro de 1974. Às autoridades militares e civis.
Disseram-se pertencer ao «quartel» de Aldeia e eram comandados pelo sub-comandante João Alves - julgo ser esta a designação hierárquica do responsável do grupo. Por nós, não demos por eles... e, naturalmente, o comando do BCAV 8423 nada nos disse sobre tal. Só dias depois, ante a nossa estupefacção, tivemos - os militares do PELREC (foto) - uma sumária explicação do oficial de operações, o capitão Falcão - precisamente a 3 de Novembro de 1974, dia em que, ao fim da tarde recebemos uma ordem de operação que (ante)previa um encontro do combatentes da FNLA - que veio a acontecer.
Ver em «O encontro com guerrilheiros da FNLA na mata do Quipemba», AQUI: http://cavaleirosdonorte.blogspot.com/2009/04/o-encontro-com-guerrilheiros-da-fnla.html.
Também soubemos depois que a razão da sua apresentação tinha principalmente a ver com o esclarecimento de actividades na serra de Quibinda, alegadamente atribuídas às forças armadas portuguesas, o que não correspondia à verdade. Eram grupos armados, que roubavam e pilhavam, ameaçavam e não sei se matavam. Facilmente se concluiu ser acção de elementos estranhos - que procuravam criar clima de desconfiança local, entre as nossas tropas e os combatentes da FNLA, num, período, recordemos, em que já estava estabelecido o cessar-fogo.
A alguns deles, tinham ocorrido o PELREC e o pelotão de sapadores, sem que alguém fosse denunciado. O mês de Outubro fechava com (des)confianças e esperanças. Principalmente a de um rápido regresso a Portugal.
Bem esperámos... Até 8 de Setembro de 1975.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

O condutort Breda a apanhar ananases pela raíz...

Condutor Joaquim Breda, com a família, num Encontro de Cavaleiros do Norte



RODOLFO TOMÁS
Texto

Ao ver o plantio de ananases (ou abacaxis?) do post de ontem, veio-me à memória um caso muito engraçado e que aconteceu em Carmona - já estavamos nós no BC12.
Quem se lembra do condutor da secretaria do Comando? O seu nome era Breda (também nome de metralhadora...). Bom moço, muito calmo, de quase dois metros de altura, às vezes até era pena não usar a sua estatura. Pode dizer-se, e ele não leva a mal, que era tímido. Mas vamos à história: um belo dia, estávamos nós a queimar muita papelada, do lado de fora - por onde saiam as viaturas, junto ao depósito da água - quando eu, o Santos (cabo escriturário) e o Breda reparámos num bonito terreno cheio de abacaxis(!).
Pedimos ao Breda: "É pá, podias fazer um favor...».
«E o que é?», perguntou ele.
«Como és mais forte, podias ir ali aquele terreno e trazias alguns abacaxis», dissemos nós, respondendo ele que «está bem».
Eu e o cabo Santos estávamos atarefados para não perdermos nenhum documento, visto serem de procedências diversas: confidencial, secretos ultra-secretos, etc., essas coisas,. e continuámos na nossa tarefa,
A dada altura, lembrámo-nos: «O Breda?».
Olhámos para o terreno e vimos que, afinal, fizeramos mal. Ao fim de um ano de comissão, o nosso amigo Breda ainda não sabia que este tipo de fruta nasce em cima da planta e era vê-lo cheio de garra, com aquele físico todo, a arrancar as plantas.

«Ora aqui, esta não tem, esta também não....», contava ele.
Para o Breda, um enorme abraço.
RODOLFO TOMÁS
- BREDA. Joquim Rama Breda. 1º. cabo condutor, natural e residente ma Barosa (Leiria).
- SANTOS. Emanuel Miranda dos Santos, 1º. cabo escriturário, natural da Gafanha da Encarnação (Ólhavo) e residente nos Estados Unidos.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

O jornal da 1º. aniversário dos Cavaleiros do Norte em Angola


A página 1 do boletim (ou jornal) que assinalou o primeiro (e único) aniversário do Batalhão de Cavalaria 8423, em Angola. Pela altura, em Junho de 1975, estávamos estacionados na cidade de Carmona, agora chamada Uíge - no BC12.
As ilustrações, como já por aqui informámos, foram de Humberto Zambujo e a página mostra o que se poderia chamar editorial - aqui denominado Abertura, com as duas espadas de Cavalaria a enobrecer o texto do Tenente-Coronel Almeida e Brito - o comandante do BCAV. 8423.
Clicar na imagem,
para a ampliar e ler.

O golpe de mão que não chegou a ser... porque não era!

Os serviços nocturnos não eram pêra doce, no Quitexe. Os postos de vigilância ficavam à volta da vila, a várias centenas de metros - que nos obrigavam a longas e prudentes caminhadas! A sanzala, cujo nome não lembro, ficava nas traseiras da administração civil e por ali tinha um dos postos de vigia dos mais temidos da noite.
Descia-se e subia-se um caminho de terra, com uma subida íngreme à chegada de enormes campos da ananás. E lá ficava, em cima, o posto, de três pisos, com as respectivas vigias. Muitas vezes, por ser distante, ia-se de jeep. Como na noite a que reporto.
O grupo da ronda, para se assegurar da forma como era feita a vigilância, resolveu ir sem luz, a partir de certa altura, e parou a uns 100 metros, talvez 150..., do posto. E progredimos, com toda a técnica aprendida na serra de Penude, no duro curso de Operações Especiais - os Rangers, de Lamego.
A noite era soprada de uma brisa quente que nos goticulava a testa, a cara e escorria por todo o corpo abaixo. Estranhamente, não havia sinais que se vissem do posto de vigia. E devia haver! Continuámos, até rastejámos e... nada! Já era preocupante! O que estaria a acontecer? Chegámos junto ao posto e... nada. E apanhámos um susto: ao olhar uma plantação de ananás, a brisa quente fazia ondear as folhas, parecia um mar! Um mar que nos amedrontava! O posto de vigia tinha a porta aberta, o que também era estranho! Teria havido um golpe de mão?!
Entrar, não foi fácil, estávamos com medo! Sem saber o que nos esperaria! Mas entrámos, em silêncio sepulcral, a transpirar de medos. Subimos ao primeiro piso, pela escada de madeira, a chiar! E... nada. Vimos dois vultos estendidos, como se dormisssem. Supusemos o pior. Um de nós, pisou uma G3 e confirmámos que estavam vivos! Dormiam!!! Pronto, golpe de mão não havia! Mas... e o militar que deveria estar de vigia?! Sabíamos quem ele era e sussurrámos o nome, sem qualquer eco de resposta. Subimos ao piso de cima e lá estava ele, de mira apontada para o lado do Quitexe, para a caminho que nos trouxera.
Poupemos palavras: ele ouviu o barulho e a luz do jeep, mas deixou de o ouvir e de a ver, sem identificar o que quer que fosse. Fixou-se, à distância de uns 150 metros, no que ele próprio não queria ver: um potencial perigo. E não via. Nós tínhamos progredido, no silêncio da noite quebrado pela brisa, já fora do ângulo de visão dele. No piso de cima, chamámo-lo e ele confundiu-nos com os dois companheiros de vigia.
«Estou a vê-los! Acolá....». E apontava para de onde nós vínhamos!
Demorámos tempo até que o conseguimos tranquilizar. Foi uma noite de medos! A de um golpe de mão que não chegou a ser... porque não era?

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O cessar-desarmamento dos milícias da região do Quitexe

A rotação do dispositivo militar do Batalhão de Cavalaria 8423 projectou-se em
Outubro, para Novembro de 1974. Há 35 anos. O Comandante Almeida e
Brito, Tenente-Coronel, em baixo, à esquerda



Hoje, há 35 anos, dia 26 de Outubro de 1974, realizou-se no Quitexe uma reunião dos comandos militares com todos os regedores da região - procurando sensibilizá-los para a necessidade do desarmamento das milícias.
Havia naturais constrangimentos de muita e boa gente, em face do pré-anunciado cessar-fogo e do seu futuro próximo, e sabia-se da indisponibilidade, ou pouca/nenhuma vontade de muitos, quanto ao largar de armas. Ja por aqui falámos disso.
A reunião procurou fazer ver a necessidade de entregarem o armamento e, com ou sem vontade, a verdade é que a capacidade negocial do Comandante Almeida e Brito levou os regedores e milícias a iniciaram a deposição voluntária das armas a partir de 28 de Outubro - fará 35 anos na próxima quarta-feira. Como o tempo passa! E vale a pena lembrar que tudo correu muito bem - lembrando-nos nós de algumas lágrimas a cair cara abaixo de alguns velhos servidores do Estado Português! Choravam para dentro!
Acontecimento relevante para o BACV. 8423 vinha noticiado de véspera: iniciou-se a rotação do dispositivo militar liderado pelo BCAV. A Companhia de Caçadores 209 iria sair a 8 de Novembro, abandonando o Sub-Sector. E a CACÇ. 4145 iria para Luanda - igualmente no decorrer de Novembro. A 1ª. CAAV. 8423 iria instalar-se em Vista Alegre. Iniciava-se a rotação que, em Março de 1975, nos levaria para o BC12, em Carmona.

domingo, 25 de outubro de 2009

O Boletim do 1º. aniversário dos Cavaleiros do Norte em Angola

Capa do Boletim do Batalhão de Cavalaria 8423


O BCAV. 8423 editou um boletim policopiado a comemorar o aniversário da chegada a Angola. Escreveu o comandante Almeida e Brito que «a evolução do nosso conhecimento, desde a fase de instrução até ao actual cumprimento do processo de descolonização, passando por um período transitório de acções militares, permite-nos poder afirmar que todos souberam interpretar a afirmação de "QUERER E SABER VENCER» que tantas vezes foi usado nas nossas conversas».
Concluía a sua «abertua» considerando que «QUERER E SABER VENCER», lema que nos orientou e que nos vai acompanhar no resto da comissão, como nisso imperativo de vida, é a melhor lembrança para o futuro, com a certeza plena de que, vivendo-o, nos restará a consciência plena de dever cumprido».
Passados 34 anos, não há que ter dúvidas da plena assumpção de responsabilidades do BCAV. 8423, num processo de que, porventura, ainda não foi feito o balanço. Mas todos os Cavaleiros do Norte sabem, e sentem orgulho, de terem sido parte da história, num momento nuclear da vida das nações irmãs. - B. CAV 8423. O boletim, de 16 páginas, teve ilustrações de Humberto Zambujo e variada colaboração, da qual falaremos um destes dias.

sábado, 24 de outubro de 2009

Os homens que gritavam pelo Neto e com armas na mão

Neto e Viegas, dois furriéis do Quitexe, com a aldeia Canzenda ao fundo.
O apelido Neto foi vulgarmente «confundido», por quem o supunha familiar
do presidente do MPLA (Agostinho Neto)



Os últimos dias de Outubro foram de algumas tensões na zona de acção do BCAV. 8423. Em particular, na zona administrativa do Quitexe.
Algumas vezes se tem discutido sobre qual a actividade mais perigosa: se a da guerrilha que se desenvolvia na mata, se a urbana. O BCAV. 8423 viveu as duas! A de mato com graus de intensidade que não se compararão aos dramáticos primeiros anos da guerra colonial, mas, como se costuma dizer, cada um sente as suas dores.
Nós sentimos as nossas e os últimos dias de Outubro de 1974 foram disso exemplo. Foram os de complicados patrulhamentos no asfalto e o desarmamento das milícias, como já aqui foi dito. Desarmamento muito mal aceite pelos povos, nomeadamente os das jurisdições administrativas do Quitexe e Aldeia Viçosa - que viam nos milícias a sua defesa a eventuais ataques. Não que se acreditasse muito na sua eficácia, bem pelo contrário - havia até a ideia de uma certa promisquidade com o chamado IN. Mas havia sensibilidades muito específicas pelo meio, medos de vinganças e de algumas delas se soube. E a tropa, valha a verdade, não chegava a todo o lado. E onde chegava, nem tudo corria bem!
Por esta altura, o PELREC foi várias vezes chamado a intervir e quase sempre acontecia um problema: confundia-se o apelido Neto, o furriel, com Agostinho Neto, o líder do MPLA. E a zona era da FNLA. Valia-lhe, e valia-nos, a cor do Neto furriel para desfazer dúvidas. Como a de um destes dias finais de Outubro de 1974, no Tabi (ou no Caunda?), quando a meio da tarde regressávamos de uma missão na Quimucanda, com paragem na fazenda Pumbassai. Fomos intimidados por um grupo armado, que se aprestava a roubar as armas aos milícias da aldeia - antecipando-se ao desarmamento. Digo-vos que não foi fácil!!
«Esnéeeneto, Esnéeeneto, Esnéeeeto!!!...», gritavam.
O que supôs, inicialmente, ser uma exultação pacífica, rapidamente se percebeu ser inamistosa e recordo a prontidão do cabo Vicente, a encostar a G3 a um dito IN. E nem vou narrar a escaramuça, que foi tão rápida quanto perigosa.
«Nunca mais é Novembro!...», disse-me o Neto, nessa noite, enquanto devorávamos um bife com ovo a cavalo, no restaurante do Pacheco.
O Neto vinha de férias dias depois...
- PELREC. Pelotão de Reconhecimento, Serviço e Informação, da CCS. É aqui muitas vezes referido, por eu próprio o integrar e, naturalmente, o conhecer melhor que qualquer outro. As sucessivas referências não diminuem, em nada, a capacidade operacional, a aptidão e o garbo militar de qualquer outro pelotão do BCAV. 8423. Todos iguais, porventura melhores que o PELREC.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O delator que punha o rabinho entre as pernas...

O edifício do comando da CCSdo BCAV. 8423, visto da estrada Carmona-Luanda

Quitexe, edifício do comando da CCS do BCAV. 8423. Ali se decidia o que nós queríamos e não queríamos. Ali se afixavam as ordens de serviço - que muitas (in)justiças publicavam, a Bem da Nação. A porta da direita era a do gabinete do capitão Oliveira, comandante da companhia.
Ali fomos chamados a prestar contas, em dada altura, o Machado, o Neto e eu. Por razão de minudências persecutórias que sempre aconteciam na tropa, denunciadas por desfavor de alguém. Nenhum de nós era «boa peça», verdade seja dita..., tínhamos as nossas «coisas», mas éramos seguramente gente solidária e companheira de todas as horas.
Entre tanta gente, como eram os cerca de 200 homens que se aquartelavam por ali, sempre havia preferências e proximidades pessoais. Mas nunca deveria existir a perseguição avulsa e disfarçada. E foi isso que o Machado, com a sua sempre exuberante capacidade reivindicativa, expôs em conversa nua de preconceitos, em conversa de bar de sargentos mas que chegou aos sexagenários ouvidos do capitão Oliveira. E eu e o Neto a fazermos coro! Alguém lhos sussurrou!
Lá fomos nós chamados a contas e respondeu menos direito o Machado, à autoritária interpelação do oficial - no gabinete daquela porta que ali se vê. Respondeu de dedo no ar, em riste, explodindo nervos e revolta! Avantajou-se o Neto, sem poupar palavras! Aclimatizei eu o ambiente, coloquial mas corrosivo no verbo.
O «combate» foi duro, é verdade, mas fomos poupados à «ordem de serviço», que sempre apareceu em branco onde alguns desejaram ver os nossos nomes a vermelho, para «sujar» a caderneta militar. E lá o delator teve uma vez mais de pôr o rabinho entre as pernas...

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

O Vitor alentejano que era sacristão no aquartelamento do Quitexe

Alferes Sousa Cruz (em primeiro plano) e furriéis Viegas e Machado


Este fim de semana estive com o Vítor Manuel Cunha Vieira, na alentejana Vidigueira. Sabem de quem estou a falar? Pertencia à CCS e ao Pelotão-Auto, embora não fosse condutor nem mecânico.
A caminho da Vidigueira, lembrei-me do Vítor. Telefonei ao Porfírio Malheiro (Pelotão-Auto), que se lembrava muito bem dele, não por este nome, como quase toda a gente, mas não me sabia dar qualquer referência - nome, morada ou telefone. Disse-me que talvez soubesse o Celestino (o condutor), de Matosinhos, e eu lembrei-me de outro Celestino, o Viegas - que de certeza me iria dizer o que queria, ou não fosse ele o nosso arquivo ou memória dos tempos de Angola.
Com o nome e a morada do Vítor na cabeça, mal cheguei à Residencial Santa Clara, na Vidigueira, perguntei se conheciam a pessoa ou a rua e indicaram-me a padaria ao lado que, aí, talvez me pudessem ajudar. E ajudaram! Subi a rua, virei à direita, passei no largo da Câmara Municipal, virei pela rua da direita, andei mais uns metros e lá estavam a associação e o café, dolado esquerdo… com o Vítor.
Bem disposto como antigamente, a aviar dois associados ou clientes, ficou muito intrigado a olhar para mim , que estava à entrada a olhar para ele. «Que quererá este maduro a olhar para mim?», pensou ele.

Olhava, olhava, olhava para mim , olhava para os clientes, mas «quem será este?».
Perguntei-lhe eu: «O senhor chama-se Vítor?».
«Sim!», respondeu ele.
«Vitor Vieira?».
«Sim...». E olhou-me intrigado.
«E não me está a reconhecer?».
«Não, mas o senhor é do norte …».
«Acertou, sou de Santo Tirso e estive em Angola».
Demos um grande abraço! Não sei se foram 10, 15 ou 20 minutos que os clientes tiveram de esperar, admirados a olhar para nós. O que sei é que, nesse pouco tempo, recordámos vários companheiros - como o Frangãos (condutor), de Cuba, ali ao lado, e algumas histórias.
Querem saber que, no final, o nosso amigo Vitor não me deixou sair sem me carregar com uma caixa de maduro e uma broa de pão da Vidigueira? Que pomada e que pão!

Mando-lhe daqui um abraço e, agora que ultrapassou, e bem, o susto que apanhou - um AVC - desejo-lhe muita saúde na companhia de sua mãe, que vive com ele e por quem mostrou um grande amor e dedicação, e da esposa e filha (professora), de quem falou com muito orgulho e carinho.
Parabéns, Vítor!!! E obrigado por aqueles minutos que passámos, tão rápidos mas que deram para dizer tanta coisa.
Antes de terminar, quero dizer-vos que vale a pena ir à Vidigueira não só pelo delicioso cozido do Restaurante O Pézinho, em Vila de Frade, todo o bom vinho e comida mas, e sobretudo, para relembrar o Vítor.
Perguntam vocês, mas quem é o Vítor? O Vitor, sempre bem disposto e com graça no seu falar alentejano, era em quem, no Batalhão, estava sempre pronto a ajudar e em quem podíamos confiar.
O VITOR era o SACRISTÃO!

Um abraço Vitor!
A. SOUSA CRUZ

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

As localidades por onde andaram os Cavaleiros do Norte

Norte de Angola nos anos 50 do século XX. Clicar na imagem, para a ampliar

O mapa do norte de Angola é dos anos 50 do século passado, mas dá para identificar parte das localidades por onde andou o BCAV. 8423. Faltando algumas bem relevantes: Zalala (1ª. CCAV.), Aldeia Viçosa (2ª CCAV.) e Santa Isabel (3ª. CCAV), ou ainda Vista Alegre, Liberato e Luísa Maria (onde estacionaram companhias independentes ou destacamentos).
- QUITEXE: Sede do Batalhão da CCS.
- CARMONA: Cidade do Uíge, onde o BCAV. 8423 esteve de 2 de Março a 4 de Agosto de 1975.
- ZALALA: Ali na zona de S. José de Encoge (à esquerda do sublinhado amarelo de Carmona).
- ALDEIA VIÇOSA: Entre Quitexe e Ponte do Dange, na estrada do café (Carmona-Luanda).
- VISTA ALEGRE: Entre Aldeia Viçosa e Ponte do Dange.
- QUIBAXE: Três ou quatro missões, entre Outubro e Dezembro de 1974.
- NEGAGE. Base aérea e hospital militar. O (furriel) Neto esteve lá internado alguns dias.
- NAMBUANGONGO: A mítica Nambuangongo. Quantas histórias de Nambuangongo se contam e cantam!
- CACUACO: Cidade passagem de Luanda para Quitexe e Carmona (Uíge), a estrada do café.
- LUANDA: A capital de Angola, cidade de chegada e partida e de mil uma histórias e aventuras, nem todas contáveis.
- CATETE: Arredores de Luanda, a caminho do Grafanil (campo militar) e Viana - cidade onde eu, o Neto e o Monteiro vivemos de 1 de Agosto a 8 de Setembro de 1975. O BCAV 8423 estava estacionado no Grafanil.
- SALAZAR: Estive lá duas vezes, movido pela curiosidade de conhecer uma cidade com o nome que tinha. Outra curiosidade minha: qual a razão de darem nomes de pessoas a cidades? Carmona, Silva Porto, Serpa Pinto, Sá da Bandeira e General Roçadas eram outros exemplos. Gostei da cidade. Foi um dos pontos de passagem e paragem da heróica coluna que, a 4 de Agosto, saiu de Carmona para Luanda. Depois da independência, passou a chamar-se N´Dalatando (o nome original).
- CAMABATELA: Ali tão perto e tão longe do Quitexe.
- DUQUE DE BRAGANÇA: As quedas foram atracção de muitos militares do batalhão.
- SANZA POMBO: Fui lá , em visita a Higino Reis, conterrâneo já falecido e que na altura era funcionário público ligado ao Ministério da Agricultura.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

As emboscadas e os medos das picadas

Picada para o Liberato (foto de Luís Patriarca)

As picadas eram o nosso terror de muitos dias e noites, de progressões apeadas ou transportadas. Os olhos tinham de ir sempre abertos, para todos lados e querendo ver o que não se queria a ver! Uma mina, uma armadilha, uma emboscada, eram momentos que poderiam ser véspera imediata de uma tragédia.
A foto da picada para o Liberato mostra por onde passei algumas vezes, fazendo rota obrigatória de missões, fossem quais fossem. Milhares de soldados por ali passsram. Ia-se por ali fora, pelas picadas, em tensão alta, espraiando olhares pelos arredores à vista e entrava-se na zona de mata, ondas as árvores faziam arcos com as copas, ou as ramadas muito folhosas, por onde macacos e outras animais laureavam os queijos da sua vida.
Cada movimento estranho, era emoção que se soltava do peito, um arrepio; o coração batia, o dedo pousava sobre a guarda do gatilho da G3. Uma vez, íamos para a Fazenda Maria Amélia, avariou-se um «burro de mato», a subir o desfiladeiro. Saltou uma equipa em guarda, trepando as pedras do lado direito, agarrada às ervas de mato e pequenas árvores que se soltava dos pedregulhos, à força de serem puxadas pelos soldados. Outra equipa, avançou! Outra, galgou alguns metros para a rectaguarda. Os cabos Almeida e Vicente, de dilagrama em mira para o que desse e viesse. Eu e o Neto em guarda de comando!
Aquela meia hora para pôr o «burro de mato» a andar, foram dias! Com o suor a escorrer em bica e o soldado mecânico a praguejar o que lhe vinha à língua, dorido das escladelas na combota do motor! Lá fomos... e viemos.
Soubemos mais tarde, dito em conversa de bar com combatentes integrados, que nessa manhã recemente alvorecida, estivemos sob menção de emboscada. Parecia certo, para os homens angolanos, que os burros de mato avariavam por ali. Por causa do sobreaquecimento do motor, explicou o mecânico. Vejam lá o que poderia ter acontecido!
- BURRO DE MATO. Designação dada aos Unimogs, veículos ligeiros de transporte militar.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O desmantelamento dos Grupos Especiais (GE) do Quitexe


Está a fazer anos, hoje mesmo: 19 de Outubro de 2009! 35 anos! O capitão Falcão, no seu jeito tranquilo de falar e com as precauções devidas, deu-nos indicação de um passo próximo: a desmantelação dos Grupos Especiais, os GE.
A CCS tinha dois e, recuando a Junho de 1974, recordo que a minha primeira operação militar em plena mata, pela serra de Quimbinda fora, foi precisamente com eles. Foi duro! A cada passo acelerado deles, tinha eu (único branco entre mais de 30 homens) de puxar toda a minha competência física e militar, adestrada nos Ranger´s, em Lamego, para não dar parte de fraco. Ao segundo dia de três, pelo tudo e pelo nada, lancei um desafio ao Chefe do GE: «Quem ficar para trás...». O tom era de ameaça e não digo o resto! Até ao final da operação, até quando fomos recolhidos pelo pelotão de Morteiros, ainda hoje acredito que, com essa coragem que escondia medo, ganhei o respeito do grupo.
A data de hoje assinala, vinha eu a dizer, o anúncio do desmantelamento dos GE. Que era preciso falar com os chefes, indagar da sua sensibilidade para esse facto. Sugerir-lhes comportamentos e ouvir-lhes a reacção, que a situação era delicada. Era a de homens que, de arma na mão, estariam do lado do Exército Português. E que iriam ficar desarmados. O mesmo iria acontecer aos milicianos que defendiam os aldeamentos.
Talvez hoje ninguém se lembre dessa gente! Mas eu lembro-me dos olhos de medo, com que ouviram os sussurros com que, quase em segredo, lhes segredámos o futuro próximo. Não sei bem porquê, mas ocorre-me o que aconteceu aos Comandos da Guiné. E também que em Julho de 1975 encontrei em Luanda um desses Chefes GE, agora como capitão e a exibir-me na Avenida D. João II, o lustro dos galões! «Agora, eu escomanda muitos home, esfurrié!...». Fomos à messe de sargentos beber umas cervejas!

domingo, 18 de outubro de 2009

Um homem tem de ir à luta... até no refeitório!

Aldeia de Talambanza, à saída do Quitexe, para Carmona. Foto de João Cláudio

A. CASAL
Texto
Na passada semana, recebi o contacto de mais um companheiro do Quitexe. Movido pelas crónicas e fotos, diz não se cansar de “ blogar” e deste modo recordar a sua passagem pela Vila.
Figura muito conhecida na Companhia, protagonizou muitas cenas ao longo da comissão mas sem nunca se exceder, conquistando o respeito e admiração de todos. Excelente operacional e com grande visão no terreno, a ele recorriam muitas vezes (discretamente) os comandantes de grupo. Mas isso são outras histórias e a que me trás aqui é a outra face, a que o tornou popular com raízes no Grafanil.
Estou a falar do soldado Canidelo e da sua fama de grande garfo! Sempre, e ainda bem, associada ao seu proveito! Conhecido pelo seu apetite voraz, não deixava os seus créditos por boca alheia!
Não tendo serviço escalado que o impedisse, fazia questão de ser o primeiro a chegar ao refeitório, mostrando-se incomodado quando não o conseguia! O Capitão, conhecedor da sua obcessão gastronómica, por vezes barrava-o junto à secretaria para o chatear ou, quem sabe, para lhe arrefecer um pouco o apetite. Recordo o dia em que estávamos prontos para sair para uma escolta, em frente ao Comando. No momento em que o alferes deu ordem de partida, o Canidelo saltou do unimog e gritou para que esperasse um pouco e correu na direcção do refeitório! Olhámos uns para os outros, a pensar no que raio se estava a passar! Passados pouco mais de 30segundos estava de volta e, perante o olhar incrédulo do Comandante que assistia à nossa partida, empurrava um pão para o bolso das calças do camuflado! O alferes, um pouco (diria muito…) atrapalhado, de imediato mandou arrancar, cortando assim qualquer hipótese de represália por parte do comandante!
Já era do conhecimento geral que ao almoço e jantar punha em acção os seus dotes de estratega. Colocava-se de “plantão” à entrada do refeitório e seleccionava meticulosamente os homens para a sua mesa. Tinha cuidados especiais com os bons garfos, mas imperativo era mesmo correr com os etiquetados de “lateiros”! Esses sim, dizia representarem uma ameaça! Ele sabia bem os gostos de cada um - estudava-os e crivava-os!!! Os chamados “piscos” eram, com um sorriso, convidados para a sua mesa!
Com o estômago “colado” às costas, intrigava-nos onde albergava tanta comida! Encostado ao pilar do refeitório, o sargento de dia pasmava a olhar para ele e encolhia os ombros! Depois, em alta voz exclamava dirigindo-se ao Cabo cozinheiro: «F…, se toda a Companhia comesse assim, nem o orçamento do Batalhão aguentava!!!...».
Mas estes comentários não o demoviam e a prova disso é que, impávido e sereno, continuava a dar ao dente! Aliás, eu não sabia se eram dentes ou se estava munido de alguma trituradora oral! «Um homem tem que ir à luta…até no refeitório!», dizia, com as bochechas dilatadas de comida!
Um dia (mal sabia ele…) teve um espectador muito especial! À distância e discretamente, o Comandante do Batalhão fez questão de assistir ao almoço do homem! De tanto ouvir falar em tamanhos apetites ficou curioso, saiu dos seus cuidados e decidiu ver para crer! Segundo o Alferes que o acompanhou na “missão”, este terá ficado bastante impressionado, para não dizer incomodado, sugerindo que talvez não fosse má ideia aconselharem-no a ir ao médico!
Sobrando sempre tanta comida, intrigava-nos a sua preocupação com a mesma! Ainda hoje estou em crer que fazia este jogo, principalmente porque lhe dava um certo gozo!
Ficou alcunhado de “terror das terrinas”, sem qualquer mau estar e sempre feliz da vida!
Hoje concluo que, ao contrário do que se dizia na altura, aqueles apetites nada tinham a ver com a idade! É que passados 35 anos, o homem continua exactamente com o mesmo espírito devorador e também com o estômago colado às costas! Grande Canidelo!

sábado, 17 de outubro de 2009

O contador de histórias «Nós... no singular»

A velha Regminton foi milhares de vezes teclada para contar estórias urbanas vistas por um rural



Se houve coisa que repetidamente fiz pelo Quitexe, foi... escrever! Lia muito, é verdade, recebia o Jornal de Notícias de domingo e segunda-feira, lia o Expresso e também por lá chegavam A Bola e o Diário de Notícias (para a CCS). E eu «fabricava» cartas para as namoradas de Portugal. As de outros!
Já por aqui contei a história do Cabrita - que não sabia escrever mas queria escrever à namorada... - e nunca falei da minha face de contador de estórias. Uma manhã de domingo, na Paris Versailles, achei-me de conversa com RC, chefe de redacção de um jornal de Angola - vinha ele de fechar a edição. Falámos longamente, até à hora do almoço, ele sem sono e eu nas núvens porque me aliciou para escrever..., e ficou acertado que eu escreveria um crónica para o jornal. Assim fiz durante meses, uma vez por semana! Era um luxo, que me levava a escrever em stencil na velha máquina da CCS reservada aos relatórios do GE. E batia teclas para fazer «Nós... no singular», com histórias urbanas achadas nos meus dias de Luanda e que poetava em forma de prosa para cultivar o espírito e alimentar a alma. Uma vez fui apanhado pelo capitão Oliveira, denunciado por um companheiro de armas, que me acusava de andar a gastar o papel de cera da Companhia, que me estava distribuído por causa dos tais relatórios. Há sempre uns amigos destes!! Fomos a contas e sobravam folhas. É que eu, esperto que nem um alho e desconfiado de tanto interesse do camarada pelo que eu andava a fazer, comprara folhas em Carmona. Valiam bem os 340$00 (angolares) que recebia por semana... Ou 240? Acho que era isso! Certo, certo é que era literalmente gasto nos restaurantes e esplanadas da capital. Ou no Quitexe e depois em Carmona! Lá o ganhei, por lá ficou...

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

||| NÃO SEI SE MERECEM QUE UM SOLDADO FIQUE AQUI...

Fazenda de Santa Isabel, onde estava instalada a 3ª. CCAV. do BCAV. 8423
e onde estivemos faz hoje precisamente 35 anos


A situação militar no Quitexe, pelos idos de Outubro de 1974, era, como já aqui foi dito, um misto de empolgamento e constrangimento, mesmo apreeensão. A generosa ideia de se regressar a casa mas cedo, foi-se diluindo por outras informações que nos chegavam. E acontecimentos.
Sucediam-se focos de instabilidade e os receios da população civil medravam, face à cada vez mais previsível saída da tropa dos seus locais mais recônditos. E a nós, militares, apontavam-nos dedos acusatórios. As nossas mães eram motivo de nomes pouco simpáticos. Ou as mulheres dos militares, quem as tinha!
Faz hoje 35 anos, realizou-se uma das três reuniões da Comissão Local de Contra-subversão (também a 3 e 30) e no dia seguinte, em Santa Isabel, a questão foi amplamente discutida, entre furriéis: o Carvalho, o Reino, o Fernandes, o Flora, Fernandes, talvez outros, e eu e o Neto. Queria eles saber tudo e nós pouco sabíamos que lhe dizer. Já o mesmo tinha acontecido no Destacamento de Luísa Maria (a 13) e nós de boca fechada e sem novas para dar aos nossos companheiros de missão.
Perguntei eu ao alferes Garcia, o que ele nos poderia dizer sobre a situação mas, se sabia, pouco disse. «É para aguentar, estamos cá para isso...», disse ele. O meu informador habitual estava longe, em Luanda, os contactos não eram fáceis - nem havia telemóveis!... - e eu só lá iria na última semana do mês. Se fosse....
No regresso ao Quitexe, antes de entrarmos pela picada de medos fora, comentei para o alferes Garcia: «Isto é uma m..., pá! Bem que podiam dizer-nos alguma coisa...». Disse-me ele, encolhendo os ombros: «Já te disse que é para aguentar....». E pela primeira vez ouvi-o criticar as posições dos civis: «Não sei se eles merecem que um soldado nosso aqui fique!».
O unimog deixou a picada, entrámos no alcatrão e ouvimos tiros ao longe, fazendo eco na densa floresta que nos cercava. Um macaco, um macaco enorme, saltava de ramo em ramo, a grunhir como um humano a chorar e, enquanto fazíamos (re)agrupamento com o grupo que vinha de Vista Alegre, senti uma nostalgia que me arrepiou, um constrangimento até aí nunca vivido em terras angolanas. Abanei a cabeça e nessa noite, já no Quitexe, fomos ao Rocha comer bifes com batatas fritas e vinho. Vinho, que era bebida rara por lá...

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

A última viagem dos Cavaleiros do Quitexe à Fazenda do Liberato

Monumento aos Mortos na Fazenda do Liberato (foto de Luís Patriarca )

O mês de Outubro de 1974, que se sonhou tranquilo, já aqui dissemos que pouco teve disso. Talvez a nossa impaciência, o roer das saudades da terra e das nossas gentes, as notícias que nos chegavam do «puto» sobre as labaredas revolucionárias do PREC («Nem mais um soldado para Angola...», gritava-se por Lisboa e nos quartéis), as esperanças que se semeavam no correio que recebíamos («Diz-se cá que a tropa vem já embora...», o que não veio a ser verdade...), tudo isso de algum modo nos constrangia os dias que não havia maneira de passarem. Nos estressava, dir-se-ia na linguagem de hoje.
O PELREC esteve sempre activo e voava no tempo em tarefas que nos levavam ora a patrulhamentos, ora a escoltas e a operações stop no asfalto (bem perigosas, por sinal...), ora a transportar os homens da acção psicológica que faziam circuito de filmes e palestras pelas sub-unidades.
Por meados de Outubro, o PELREC foi ao Liberato, a Santa Isabel e Zalala, as fazendas onde a tropa estacionava desde 1961/62. Preparava-se a rotação do BCAV. 8423, em evidente retracção do dispositivo militar - levando em linha de conta o cessar fogo anunciado pela FNLA (o partido emancipalista que principalmente operava no Uíge), o MPLA e a UNITA. Iriam ser abandonadas.
O Liberato era longe e de picadas não aliviadas de perigos, onde furrielava no sector de alimentação o meu amigo Zé Marques, que é do Caramulo e agora funcionário da Caixa Geral de Depósitos, em Águeda. Por lá estava ele, sem que eu soubesse e alguma vez o encontrasse.
No regresso, faz anos por estes dias, registou-se uma breve escaramuça, deflagrada a partir de um outeiro para a picada onde passava a coluna militar, felizmente sem passar disso. Mas ainda se ouviram tiros avulsos e em rajada e, por isso e razões de segurança, aprudentou-se ainda mais o risco de alguma minagem ou o rebentamento de armadilhas. Bem se compreende, por isso, o tempo de largas horas que demorou o regresso, o pára agora e avança depois que razões de segurança obrigaram nessa última viagem ao Liberato. De lá, lembro o desconsolo e nostalgia encontrados nos militares, a maior parte deles naturais de Angola. E o monumento aos mortos (foto), que saudámos em continência instintiva e em breves momentos de reflexão!
- PUTO. Designação (peti nom...) habitulamente atribuída a Portugal, pelos militares europeus. Vais ao «puto», tens correio do «puto»?.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Dois civis emboscados e assassinados entre as Fazendas Garcia II e Ana Maria

Aldeias na área de Aldeia Viçosa, a partir do Quitexe (imagem do Google)


O já aqui falado cessar fogo - que a FNLA anunciaria unilateramente a 15 de Outubro, faz amanhã 35 anos - já de alguma maneira se vivia na área de intervenção operacional do BCAV. 8423. Na verdade, os comandos militares já tinham chegado a um acordo tácito, que levou à paragem das hostilidades entre as nossas tropas (NT) e a FNLA.
Mas não deixaram de continuar problemas, o que obrigou as NT a intensa actividade operacional, em particular no que tinha a ver com a segurança dos itinerários e nomeadamente no troço entre o Quitexe e Aldeia Viçosa - onde regularmente aconteciam pilhagens às viaturas que por lá transitavam.
Descaí-me por estes dias, com a confidência do cessar fogo oficial e definitivo, em conversa com o Neto. «Tenho a certeza, pá....», assegurava-lhe eu. Que não, «ainda é cedo...», ripostava-me o Neto: «Quando isso acontecer vamos logo para o puto...». Bom, não viemos nada..., ainda por ficámos por Angola até 8 de Setembro de 1975, quase mais um ano.
O dia de hoje, 14 de Outubro mas de 1974, ficou amarga e tragicamente assinalado na nossa área operacional. Já aqui falámos do drama, mas pelo sombolismo do dia, lembramos que, faz hoje 35 anos, dois civis europeus foram assassinados entre as Fazendas Garcia II e Ana Maria. Seguiam numa viatura civil e foram vítimas de uma emboscada.
Foi uma acção esporádica, como o tempo veio a confirmar, supostamente um ajuste de contas, mas inquietou a comunidade civil e preocupou os militares. O que mais se temia era que, apesar do cessar fogo anunciado pela FNLA, alguns combatentes actuassem isolados, como terá sido o caso! Há 35 anos, faz hoje!

terça-feira, 13 de outubro de 2009

O futebol no dia-a-dia dos Cavaleiros do Quitexe


O futebol fazia parte do dia-a-dia do Quitexe, mesmo entre os militares - que tantas saudades matavam no norte de Angola a ouvir os relatos de Artur Agostinho, de Lança Moreira, Rui Romano, Amadeu José de Freitas e outros.

Ouvir estas vozes imortais da rádio portuguesa, mesmo no distante Uíge e a 8000 quilómetros de casa, era como se respirássemos um lenitivo e nos sentíssemos a viver as emoções dos estádios. Melhor ainda, como se estivessemos a sentir os cheiros das nossas aldeias. O destino dera-me o gosto de conhecer Rui Romano, num seu relato de um Beira Mar-CUF, aí por 1971, ou 1972..., e deliciava-me quando o ouvia a relatar os jogos do «puto», os benficas e os sportings, os portos, a Académica (por onde vagueei em râguebis clandestinos) e do beira-beira, o Beira Mar!

Pelo Quitexe, jogava-se a bola, pelotões contra pelotões, unidades contra unidades; ou contra equipas civis. Eu ainda fui fazer uns jogos ao Recreativo do Uíge, mas dei-me mal com o pó do «relvado».

A foto parece-me ser de uma «selecção» militar. Consigo identificar, de pé, o Lopes, o Gomes (?, enfermeiro), o Grácio (sapador) e o Mosteias e já não me lembro dos outros dois (nota: o Pagaimo, do Pelotão de Morteiros, disse-me, a 26 de Novembro de 2009, que o quinto, da esquerda para a direita, era o Alves, 1º. cabo maqueiro e de Espinho).

Em baixo, o primeiro parece-me ser o Monteiro (furriel), não me lembro do seguinte (diz o Pagaimo que seria um condutor, da Zona da Covilhã) e depois está o Teixeira (estofador); não reconheço o outro e o último, à direita, é o Botelho (atirador). Alguém será capaz de os identificar. Ficamos à espera!

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

A véspera do dia 13 de Outubro de 1974 no Quitexe

Parada da CCS do BCAV. 8423, no Quitexe, vista da capela, antes de 1974



Hoje, há 35 anos, também era obviamente véspera de Fátima. E todos se lembram das idas a Fátima a pé, cumprindo promessas que nos protegeriam dos perigos da guerra ultramarina. Havia algo de mais que fé nesse sacrifício físico que, de alguma maneira, nos aconchegava emoções psicológicas, na crente protecção divina que receberíamos. Talvez algo de esotérico.
Por mim, que sou católico, fiz questão de esclarecer minha mãe - que ao tempo era recém-viúva - para não assumir em nome de terceiros os dogmas da sua fé, por todo o amor que tivesse ao filho que partia para a guerra. Custou-lhe, eu sei, mas aceitou.
Vem isto ao caso por, faz hoje precisamente 35 anos, terem acontecido duas coisas por mim interessantes: recebi um aerograma de minha mãe, lembrando-me os seus terços de oração a Nossa Senhora de Fátima, para que tudo me corresse bem; e soube, por vias travessas e dentro do BCAV. 8423, que estava iminente o acordo de cessar fogo em Angola. O que confirmava uma informação lateral, de um militar familiar de pessoa amiga, que estava no QG, em Luanda.
Tive algum receio em comentar o assunto com os meus pares habituais e calei-o. Mas deu-se o caso de passar por mim o comandante Almeida e Brito, a quem inopinadamente pergunta sobre tal iminência. Olhou-me, de ar grave e severo, como quem está a pensar que «este gajo é maluco..» ou, então, «sabe mais do que deveria saber!...». E seguiu em frente, a bater o pingalim na calça verde da farda nº.1.
Seguir em frente, ele seguiu, mas não demoraram minutos até que pressurosamente fosse chamado ao seu gabinete.
«O que é que fazes na vida civil?...». Lá lhe respondi. «E para além disso?!...». Igualmente respondi. Mandou-me embora e logo me voltou a chamar, para me dizer só uma coisa: «Não falas nada disto!...». Assim fiz, mas, sem querer, confirmou-me ele o que eu queria saber, que ia haver cesssar fogo! E mostrou-me uma ficha, onde constava o meu nome com indicações de um trabalho meu, que tinha a ver com os Serviços Florestais das Talhadas, aqui ao lado de Águeda.

Vendo que o problema da floresta das Talhadas e Águeda ainda continua por resolver a contento popular, não deixa de ser irónico recuar estes 35 anos.

domingo, 11 de outubro de 2009

Oficiais e Cavaleiros do Norte no Natal de 1974


A foto que editamos mostra uma parte dos quadros de oficiais do BACV. 8423, na ceia de Natal de 1974, no Quitexe. Sentados, e da esquerda para a direita, reconhecem-se o capitão Paulo Fernandes (comandante da 3ª. CCAV, instalada em Santa Isabel), o furriel Reina, o tenente-coronel Almeida e Brito (comandante do batalhão), o alferes Ribeiro (?), o 1º. sargento Luzia e o capitão Oliveira (comandante da CCS).
Aqui, em primeiro plano, de bigode, reconhecem-se o alferes Hermida, seguindo-se a esposa e, depois, a esposa e o alferes Cruz (de óculos).
Era a ceia de Natal, de afectos e de saudades da família, dos amigos, das rabanadas e das filhós, do bolo-rei e do bacalhau e do perú. Até do frio e da chuva da época. Por lá, bem regadinho, comemos bacalhau - prato que não era vulgar por aqueles sítios. Bem pelo contrário.

sábado, 10 de outubro de 2009

O turismo possível dos jovens Cavaleiros do Quitexe...

Machado, Cruz e Rocha nas Quedas do Duque de Bragança, em 1974. Clicar na foto

A campanha militar que nos levou aos longes africanos, com todos seus medos e tragédias, foi tempo, também, de fartos e apetecidos passeios pela terra gigante de Angola. A acção psicológica assim achava por bem e a malta, claro, logo aproveitava para o turismo possível, enchendo berliets pelas centenas de quilómetros que levavam aos destinos escolhidos.
Fui azarento nesse ponto. Excursão que houvesse e eu estava de... serviço. E, com o meu orgulhosinho rural em vincado, nunca quis sequer propor uma troca, para ir «vadiar» pelos pontos da Angola de feitiços e beleza ímpar que os meus olhos também poderiam exportar para a minha memória de hoje. Foram outros, fizeram eles muito bem.
A imagem retrata três bons companheiros do Quitexe, nas Quedas do Duque de Bragança: o Machado, que furrielava a mecânica do armamento; o Cruz, que veio a ser 2º. sargento miliciano e superentendia nas montagens-rádio; e o Rocha, das transmissões, furriel nascido e residente em Valadares de Gaia.
Os três estiveram no encontro de Águeda - já faz um mês na próxima segunda-feira, faz hoje pelo dia de semana... - e não se deu pelos anos passarem por eles: o Rocha, continua fresquinho que nem alface acabada de cortar na horta; o Machado, sempre a «beduinar» e a explodir opiniões, alto e sonoramente...; o Cruz, de cabelo pintado de branco, mas sempre com a sua risada juvenil e solta.
Quais artroses, quais reumatismos, quais ácidos úricos, qual colesterol ou triglicerídios!!! E se (es)tivesem, lá estaria o sempre atento (furriel) enfermeiro Lopes, para receitar alguma «droga»; ou, na falta dele, o inimitável Buraquinho!

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

O companheirismo sempre vivo dos militares do BCAV. 8423

Cavaleiros do Norte em confraternização quitexana, em um dia de 1974. Todos furriéis.
Em cima, da esquerda para a direita, Bento, Rocha, Viegas, Flora, Lopes (enfermeiro, Capitão
e Ribeiro. Em baixo: Carvalho, Belo, Lopes (atirador) e Reina.
A vila do Quitexe era a sede do BCAV. 8423 e onde estava a CCS, que todos os meses, em regime de rotação, era reforçada com pelotões das três companhias operacionais. A razão era militarmente estratégica, mas funcionava como mobilização de afectos, entre soldados, entre furriéis e entre oficiais milicianos.
O batalhão estava distribuído por várias sub-unidades e estar no Quitexe era, de alguma forma, um «prémio» para aqueles nossos companheiros, algo enciumentados, diria eu, pelos nossos «privilégios». Coisa que nós, quitexanos residentes, sempre contestámos.
O Grenha Lopes era dos mais «barulhentos», por essa razão! Muitas discussões se pegaram no bar e messe de sargentos, esbatendo-se argumentos e semeando-se e cultivando-se alguns arrufos, que sempre se amortalhavam nuns copos bem bebidos, em piadas mais ou menos brejeiras, em estórias mais ou menos recamblescas, endeusando-se feitos militares (cada companhia era melhor!...) e substantivando-se lendas que a nossa juventude bem irreverente, irreverentemente cultivava!
O dever de ofício levou-me dezenas de vezes (com o PELREC, claro..) a todas as três companhias e lá era recebido com as infindáveis comparações. «Tás a ver, como estamos aqui?!...». Eu via... e lá matávamos as «diferenças» com mais umas Cucas, umas Nocais, umas N´Golas e, bem mais relevante, abraços de forte solidariedade. Esse companheirismo multiplicou-se em Carmona e continuou até hoje! Sempre que o telefone toca! Sempre que recuamos 34 anos nas nossas vidas!
- CCS do BCAV. 8423. Furriéis Bento, Rocha Viegas e Lopes.
- 3ª. CCAV. do BCAV. 8423. Ribeiro, Flora, Grenha Lopes, Capitão, Belo, Reina e Carvalho.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O mílímetro de patilha que empatilhou as férias do militar do Quitexe...

Quitexe, saída para Carmona. À direita, vê-se a serração e a sanzalaTalambanza.
Ao fundo à esquerda, o posto dos Voluntários. Imponente, ao fundo, a serra do Quitoque



A. CASAL
Texto
Após alguns meses de “guerra” no Quitexe, tinha finalmente chegado a hora das merecidas férias. Luanda, destino inicialmente traçado para o gozo, teve que esperar e apontei como destino o “puto”.
Aperaltado e naturalmente ansioso, esperava a hora de levantar a tão desejada licença. Mais uns retoques acompanhados de alguns pingos de Old Spice (perfume da época) e estava composto o ramalhete!
À minha volta, os amigos carregavam-me de recados para a família! O Alvarito (futebolista do Marinhense), lavado em lágrimas, pedia-me para dar um grande beijo à mãe e um abraço ao pai! «Mas olha que à minha miúda é só um aperto de mão …não te armes lá em parvo c…..!...» dizia-me ele, misturando soluços com sorrisos, tentando disfarçar a angústia da saudade!
Se por um lado lamentavam não estar no meu lugar, por outro estavam visivelmente contentes por saberem que me iria encontrar com os seus!
Feliz da vida, lá fui em passo acelerado para não perder a boleia para Carmona, onde apanharia o avião para Luanda. Chegado à secretaria, esbarrei com um ambiente um tanto pesado! Bom, dizia-se que o capitão após uma noite “a pão e água”, ficava completamente endiabrado!...
Depois de dizer ao que ia, olhou-me bem de frente e disse: «Você nem pense que vai sair daqui com essas patilhas!!!...».
Sabendo eu muito bem quem tinha pela frente, qualquer argumento só iria complicar ainda mais as coisas! Com amargo de boca e carregado de pensamentos e vontades que agora não digo, voltei ao quarto para retirar quase por completo as patilhas! «Filho da mãe, lixei-te!...», pensei eu.
Avenida abaixo e a caminho da secretaria a que chamavam «toca do lobo» (eu sei bem porquê…), vomitei impropérios que me atenuaram um pouco o fervilhar do peito!
Confiei demais! Com ar indiferente, disse-me exactamente as mesmas palavras, tendo o cuidado de as soletrar! Mas ainda não satisfeito, chamou o 1º. sargento para que me medisse as patilhas com uma régua – e ele mediu mesmo!!! Ninguém imagina o ar trocista com que cumpriu a ordem!...Também ninguém imagina o que me passou pela cabeça!...
Pasme-se que a patilha esquerda tinha mais um milímetro que a direita!!! É verdade… um milímetro…disse ele!!! …
Olhei-os com uma certa pena! Se o Exército era o espelho da Nação, então aqueles dois estavam a mais! Até rangi os dentes de raiva!
O capitão tinha finalmente descoberto uma oportunidade de ouro para me azucrinar o juízo, sabendo-me refém daquele papel! Gozando o momento, esfregava-os com a ponta dos dedos enquanto me olhava e abanava a perna! O abanar de perna tinha vários significados e naquele caso queria dizer «ai que se eu pudesse não ias mesmo!...».
Apercebi-me que, do fundo da secretaria, o cabo escriturário articulava a palavra “Matos”! «Espera lá…Matos…é o barbeiro...», decifrei eu! Pedi licença para me retirar e, em passo bem ligeiro, lá fui pedir-lhe que usasse os seus dotes e me alinhasse as patilhas! Disse-me logo que não lhes mexia porque elas estavam rigorosamente iguais e que me apresentasse assim mesmo!
Já com o furriel Antão a olhar para as horas e a bater com as unhas no vidro do relógio, eis-me de novo na secretaria! Mas o homem voltava ao ataque e não desarmava! «Meu Capitão, até foi o barbeiro que me aparou agora as patilhas!… Está a ver?!...», disse eu, já a descontrolar-me um pouco e quase a cair no meu jeito impulsivo! Com o ar mais natural e sereno do mundo respondeu-me: «Ai sim?!... Eu não quero ver nada, mas se foi o Matos que lhe aparou as patilhas… então é porque estão bem aparadas!!!...».
Atónitos, todos (menos o sargento…) ficámos a olhar para ele, não querendo acreditar no que acabaramos de ouvir! Como dizia o anúncio: “Pasta Medicinal Couto - palavras para quê?!...”.
Claro que fui de férias! Mas o achincalho, esse, não o engoli! Não só por mim, mas principalmente pelo filho da minha mãe! No regresso, desprezando ódios e amarguras, entendi, nem que fosse apenas para salvaguardar a minha sanidade mental, saldar as contas que me pareciam (e estavam) desequilibradas! E foram de facto saldadas! E nem eu nem o bom do capitão ficámos a perder… nem a ganhar! Contas de outro rosário!
A.CASAL

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

A messe dos furriéis «revoltosos» da CCS dos Cavaleiros do Quitexe

Norberto Morais e A. Lopes, furriéis alentejanos da CCS do BCAV8423, no Quitexe (1974)


A comunidade militar do Quitexe estava dividida por vários edifícios civis, para além do núcleo principal, digamos - onde se localizavam as casernas e a cozinha/refeitório, as oficinas, o parque-auto, as transmissões, a secretaria e o comando.
A foto mostra, repimpados da Silva, os furriéis Morais e o Lopes, de frente para o enfermaria, provavelmente a um qualquer domingo e a matar o tempo, que nunca mas passava até ao nosso regresso. Atrás, na avenida da vila, fica a messe e o bar de sargentos - que era o nosso poiso diário, onde matávamos a fome e degustávamos bebidas que nos amoleciam as saudades da terra e da nossa gente.
Foi palco de muitas histórias, muitas delas apimentadas pelo rubor dos nossos desejos e a falibilidade dos nossos sonhos. Quantas discussões por aqui se tiveram, sobre tudo: a tropa, a guerra, as saudades, o tempo que não andava para a frente, as épicas missões dos militares operacionais (e quantos exageros!...), as mulheres que alguns de nós por cá deixaram a moerem-se d´amores, as mulheres de lá... - que olhávamo de longe, disfarçando desejos!
Um dia, nesta messe que nos matou fomes e foi palco de muitos exageros gastronómicos e alcoólicos, a maioria dos furriéis tomou uma decisão radical: - não comer à mesa com os sargentos e companheiros «feitos» com eles. Soube-se nesse dia como nem sempre a solidariedade é vã. Como, afirmadamente, todos podemos optar e confrontar. Discutir razões e assumir atitudes. Qe o diga o Machado, líder da revolta - que não foi rebelião, mas impôs razões. Não foi, ó grande «beduíno!»... Também assim se levedou o espírito que fez do BCAV. 8423 um exemplo pelo que foi e fez em terras do Uíge!
- MORAIS. Norberto António Ribeirinho Carita de Morais, furriel miliciano mecânico-auto. Natural de Niza, engenheiro e quadro superior da Estação Macional de Plantas, em Elvas, onde reside.
- LOPES. António Maria Verdelho da Silva Lopes, furriel miliciano enfermeiro, natural e residente em Vendas Novas - onde é tesoureiro de Finanças.
- MACHADO. Manuel Afonso Machado, furriel mecânico de armamento. Natural de Covelo do Gerez (Montalegre) e residente em Braga, onde é quadro superior de EDP. Popularizou o epíteto Beduíno, que invariavelmente chamava a quem se portasse menos bem de normas. Chamar Beduíno a alguém, a alguma altura, passou a ser termo carinhoso - como no Encontro de Águeda vincadamente se confirmou.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

O furriel «travestido» que foi ao cinema ver «Eusébio»

Plantação de café nas traseiras da Casa dos Furriéis (em cima) e furriéis
Miguel (páraquedista), Viegas /travestido) e Neto (em baixo).



O mês de Outubro de 1974, que era para ser tranquilo da silva, afinal encheu-se de peripécias. E nem sempre as melhores. Desde logo porque a tal ideia do cessar fogo, afinal redundava em constantes «macas», nomeadamente nas fazendas - onde os bailundos, contratados no sul de Angola para os enormes cafezais da zona, eram ameaçados: ou abandonavam as fazendas, ou eram mortos. E não eram ameaçados por nós!
O objectivo parecia claro: agir coercivamente e destruir a economia regional, criar instabilidade, provocar o êxodo dos fazendeiros ou, na sua ausência, a do pessoal dirigente. Os brancos começaram realmente a abandoná-las, não fosse o diabo tecê-las..., não se cuidava já das tarefas agrícolas e a produção de café estava em risco.
Por isso, ou porque alguns nativos se aproveitam dessa instabilidade para ajustar contas de alguns abusos; ou porque o chamado IN estava infiltrados nas aldeias (como toda a gente sabia...) e instabilizava a situação, a verdade é que se multiplicavam pequenos conflitos e éramos repetidamente chamados a intervir nas fazendas e roças. Até nas aldeias... Numa dessa saídas, lamentavelmente, tivemos de deter o encarregado de uma fazenda - que, provadamente, roubava os trabalhadores na distribuição da alimentação. Gerou-se escaramuça tal, que ele pediu auxílio à administração civil e calhou-nos na rifa ir lá. Não foi fácil controlar o turbilhão de gente amotinada no eirado do café.
Outubro de 1974 foi o mês em que, travestido, fui ao cinema do Quitexe ver o filme «Eusébio» e um companheiro de armas, sem desconfiar que era eu, começou a medrar de entusiasmo e, começando pelo joelho esquerdo, me quis sentir o cheiro das carnes mais púdicas. Tive de «fugir« para o quarto - onde me procurou, danado da vida, o bom do tenente Mora, que me vira a correr para lá e supondo que lá entrara uma mulher. Tive de ter tempo de tirar a roupa, foram uns segundinhos..., vestir uns calções e abrir a porta. O tenente Mora,e em passo rápido, encontrou, vasculhou mas não encontrou mulher nenhuma, como é óbvio, nem dentro dos armários nem debaixo das camas. «Como é que ela saiu, se a janela está com a rede mosquiteira?», interrogava-me ele, espantado, irritado, quase colérico.

Que não, dizia eu, «o meu tenente enganou-se, não entrou aqui nenhuma mulher». Nunca ele soube, que eu saiba, o que realmente se passou.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

O fazendeiro que negou água aos soldados do PELREC

Mapa da região de Quitexe, desenhado por João Nogueira
Garcia. Clicar na imagem, para a ampliar e ver melhor



Nomes de localidades e fazendas há que, sendo embora da área militar do Quitexe, já nos passaram da memória. Ora porque já lá vão 34 anos, o que é tempo de muito desgaste, ora porque outros nos marcaram mais fortemente.
João Garcia, que tem berças do Quitexe - onde nasceu em 1957, filho de família de fazendeiros e comerciantes e baptismo de padres italianos, e por lá viveu até ao 15 de Março de 1961 - teve a gentileza de me oferecer um livro do pai: "Angola 61 - Quitexe, uma tragédia anunciada». E nele, ao lê-lo, recordo viagens e patrulhas, pontos de partida e chegada de operações. E lá está o Dambi Angola, sanzala que a nossa memória pessoal de alguma maneira mitifica, como se de lenda se tratasse, pelas razões que já aqui foram relatadas (VER AQUI).
Uma fazenda que me passava de memória (e não a cito, por eventual lesão de interesses...) tem a ver com uma inóspita e desajustada recepção do proprietário - que recusou água aos soldados e ofereceu wisky a furriéis. O que ele fez!!! Recusámos nós a oferenda escocesa, em tom que não lhe deve ter deixado dúvidas e cara de poucos amigos, e fechámos os olhos aos patos e um porco que os «pelrec´s» fizeram «voar» para a caixa da berliet. O homem teria as razões dele, não sei quais..., mas recusar água aos soldados isso é que não! Soldados, aliás, que nesse e outros dias, para o proteger e ir fazer vendas e compras a Carmona, faziam mais de 300 quilómetros pelas picadas onde comiam o pó vermelho e afugentavam medos dos perigos que os (nos) espreitavam.
O Neto «perdeu-se» da cabeça, alterou-se, vociferou e, por vontade dele, esganava-se o homem ali mesmo; e valha a verdade que ele não merecia outra coisa! A mim, revoltado, apetecia-me enfiar-lhe a G3 por um certo sítio acima. Mas, sem violências físicas, por essa vez... não o dispensámos, mesmo assim, de um bom vernáculo português, a tratar a mãe e a mulher (se a tinha...) como nos apeteceu, amolecendo a nossa ira.
O caso chegou ao comando, com queixa do fazendeiro sobre nós, mas foi severo e rigoroso o tenente-coronel Almeida e Brito, informado do quadro da situação. Não o insultou, não o ameaçou, mas falou-lhe alto e bom som, lendo-se-lhe nos olhos a vontade de o maltratar ou espatifar a cara, quando, em vez disso, o convidou a sair do gabinete.
Negar água aos soldados, essa é que não! Filho da mãe!
- GARCIA. João Luís Matos Garcia, nascido no Quitexe e filho de João Nogueira Garcia, autor do livro «Angola 61 / Quitexe, uma tragédia anunciada - O Velho Cazenza e Outras Histórias», edição do autor, 2001. O mapa (manual) foi de lá retirado.

domingo, 4 de outubro de 2009

O Outubro de 1974, pilhagens, medos, cinema e futebol

Uma equipa de futebol da CCS do BCAV. 8423. Em cima, da esquerda para a
direita: Grácio, Gomes, Miguel (escriturário), Botelho, Miguel (paraquedista), ?? e Soares. Em
baixo: Miguel (?, condutor), Mosteias, Lopes, ??, Monteiro (furriel) e Teixeira (estofador).
Quem se lembra dos nomes dos não identificados? Clicar na foto para a ampliar
O Quitexe, rua principal (estrada Carmona-Luanda). A Casa Gaspar, à direita

O Quitexe de Outubro de 1974, para quem chegava de férias de um mês, a laurear o queijo pela enorme Angola que a todos apaixona, parecia uma vila tranquila. Até, demais! Corriam boatos sobe o próximo cessar fogo oficial e, cá para nós que ninguém nos ouve, era isso mesmo que todos queríamos.
O Clube do Quitexe era espaço de projecção de filmes e local onde a tropa punha olho nas moçoilas mais bonitas que por lá iam passear-se ao fim de semana - ora vindas das fazendas, ou de Carmona, onde estudavam ou trabalhavam. A tropa jogava futebol, inter-pelotões e sub-unidades e com grupos de civis. O campo da vila foi cenário de disputadíssimos encontros de bola - aos quais não faltavam alguns slogans de «guerra» e algumas canelas a sangrar.
A realidade era ligeiramente diferente e a praxe pôs-me de serviço mal cheguei, de sargento-dia, quando houve uma escaramuça nocturna, que envolveu alguns tiros e perseguições. Dois civis foram parar ao Posto 5 e de lá entregues à administração civil.
Os patrulhamentos intensificaram-se, nomeadamente para garantir a liberdade de tráfego entre o Quitexe e Aldeia Viçosa - onde se registavam pilhagens a viaturas civis. E havia problemas nas fazendas, onde o exôdo dos trabalhadores do sul, em consequência da agitação provocada pelos movimentos emancipalistas, punha em perigo as colheitas que se preparavam para Janeiro. Temia-se o pior, no plano económico.
Por essa altura, e por várias vezes, realizaram-se reuniões da Comissão Local de Contra-Subversão. As forças armadas intensificaram os patrulhamentos e as «visitas» a fazendas, procurando criar condições de segurança. Não foi um mês fácil, o de Outubro de 1974.

sábado, 3 de outubro de 2009

O 1º. cabo Tomás e o homem que roubou comida...

Rodolfo Tomás, 24 anos e 4 dias depois de chegarmos de Angola, no
Encontro de Águeda, com a esposa, a 12 de Setembro de 2009
O Tomás tem sido um dos animadores deste blogue, comentando com o propósito de quem tem memórias e companheirismo vivo. Dele me lembro bem, pela terras do Quitexe e de uma cena breve, no BC12, nos amargos e trágicos primeiros dias de Junho de 1975. A 3 ou 4.
Uma história curta: um dos refugiados na parada roubou comida a uma senhora, sabe-se lá porque fomes. Eu tinha chegado ao aquartelamento, com o PELREC - para uma breve refeição quente, pois estávamos estourados e esfomeados, depois de 49 ou 72 horas de muita tensão. Comemos juntos, no refeitório, e eu vim à parada ver o que se passava com aquele mar de gente, de mãos a abanar e estômagos vazios, que ali se refugiava. Muitos deles, centenas..., nós mesmos tínhamos levado da cidade.
Ao ver o homem a roubar a comida, pus-lhe a mão e houve um breve momento de tensão, que podia dar em tudo, menos em coisa pacífica. Aí, apareceu o Tomás - que por qualquer razão conhecia o sujeito.
«Meu furriel?!...», exclamou. E olhou-me com ar grave, a apertar os lábios, como que a pedir compreensão para o homem. Compreender, eu compreendia, mas muito imperativo (ainda hoje não perdi esse feitiozinho...), respondi-lhe de modos menos simpáticos. E fiz o que devia, para que a comida fosse devolvida. O homem que esperasse pela sua vez, a senhora tinha várias crianças ao lado dela e, por mim, eram prioridade absoluta.
Interveio o Tomás: «Posso arranjar-lhe comida?!...». Penso que distribuiu parte do almoço dele com o homem e eu e o PELREC voltámos à cidade, onde nos esperavam o cheiro da pólvora, os silvos das rajadas, o rebentamento de granadas, morteiros e obuses, os mil perigos de uma guerra urbana e muitas mortes entre combatentes da FNLA e MPLA. Algumas vi eu, ao vivo!
- TOMÁS. Rodolfo Hernâni Tavares Tomás, 1º. cabo rádio-montador. Residente em Lousada.