1974. Em baixo, um guerrilheiro da FNLA. Este encontro terá sido um dos primeiros entre as FA portuguesas e as forças dos movimentos de libertação.
Amigo meu da tropa africana, o Pires de Bragança, enviou-me mensagem por se falar aqui, neste blogue, do mesmo tempo de ele, com o meu, no chão angolano. «Tens de pôr mais fotografias da malta, contar mais histórias....!», berrou ele comigo, no seu jeito transmontano de falar e sentir as coisas.
Tenho várias histórias da minha história com o Pires de Bragança, que era furriel miliciano de transmissões e apareceu em Santa Margarida, ainda cabo miliciano, na nossa mobilização pré-Angola, chegado a uma segunda-feira de carnaval. Nós já éramos veteranos de «guerra», experimentados militares da IAO (Instrução Altamente Operacional) e gozávamos à fartazana com os «maçaricos» que chegavam. E lá chegou o cabo-miliciano Pires.
«Ide-vos f...», reagiu ele, chegado com o Rocha, respondendo às nossas provocações. Fartámo-nos de rir.
Já em Angola, no Quitexe, homem de transmissões, «cansou-se» de nos ouvir, aos operacionais, falar das nossas lendas de guerra, dos nossos heroísmos das picadas e das matas cerradas de Angola, enfrentando os perigos e os medos das situações que se embrulhavam no pó quente e vermelho do chão angolano. Blá, bla, blá...
Um dia, ou uma noite?, provocou-me, já provavelmente farto de nos ouvir contar histórias e do seu lazer aquartelado. «Gostava de ir convosco numa operação...».
«Só se o capitão autorizar...», disse eu.
Ir numa operação, sem constar do plano da dita, não era coisa que se cheirasse. Ou pudesse fazer. Era contra todas as regras de segurança! E as NEP´s?!!!
«Vê lá isso...».
Dias depois, a 3 de Novembro de 1974, recebi uma ordem de operação muito especial: sair às 4 da madrugada do outro dia para um possível contacto com guerrilheiros do FNLA. Quem sabia dessas coisas era, naturalmente, o Gabinete de Operações - que tinha os seus contactos, que eu não sei contar.
Disse eu ao Pires, de Bragança: «Queres ir amanhã?!».
- «P´ra onde?», perguntou ele.
- «Depois sabes...!», disse eu. Eu não podia dizer. E acrescentei-lhe: «Tens de ter autorização do capitão Falcão».
Acabei por ser eu a pedir e lá foi o furriel Pires, o das transmissões. Havia outro Pires, o sapador, do Montijo.
O objectivo era a aldeia (sanzala) do Dambi Angola, na Mata do Quipemba, entre Quitexe e Aldeia Viçosa. Lá chegámos, de dia. Pelo caminho, poupando palavras, passámos incólumes numa vigia dos «turras» (um deles apontando-nos uma arma, de cima de uma árvore). Caíria, a tiro nosso, caso esboçasse qualquer gesto. O Breda, condutor-auto, suava frio de ansiedades, e tremia, ao passar debaixo da árvore, conduzindo o unimog em que eu próprio seguia.
Chegámos à sanzala, num adro imenso, e os unimogs pararam em posições de segurança. Olhámos, era eu o comandante da força, e não tive medo. Se eles lá estavam, com eles falaríamos. Era ao que íamos. Levávamos grades de cerveja e tabaco, aconselhados pela Acção Psicológica. Faltava «descobrir» o inimigo, misturado entre as gente da sanzala.
Saltei do unimog, sem tirar as divisas do camuflado. Provocador, digamos: «Sou o furriel Ranger!...». Manias!! Nem falar!!! E avancei, passo a passo, de mãos tensas, caídas nas ancas, a direita segurando a G3.
«Posso levar um tiro...», sentia eu. Do cinturão, penduravam-se granadas defensivas, prontas a estourar. A G3, de resto, estava armada com o dilagrama, para o que desse e viesse e seria letal, mortalíssimo; dilagrama que eu dispararia, em qualquer caso.
Um passo meu, em frente, era um passo atrás dos populares.
«Boa tarde, somos amigos, vamos falar...», gritei eu. E voltei a gritar, mais um passo e outro! Confesso que meio a medo.
Poupando palavras, confraternizámos nessa tarde. Tarde em que o grupo da FNLA soube que tinha havido uma revolução em Lisboa - sete meses antes.
Beberam os fnla´s cerveja, depois de nós bebermos. Fumaram os CT depois de alguns de nós. E tirámos fotografias.
Dizia o Pires, no regresso: «Estes é que são os turras?!». Eram.
Eu (Viegas), era tratado por Veigas. Senti-me amedrontado! Eh, pá... afinal eles sabiam quem eu era.
Guardo do Pires, o seu desabafo no jantar de camarão e cerveja à farta, que ele pagou nessa noite, no restaurante do Rocha, no Quitexe. Mais ou menos isto: «Como é que saltaste do Unimog, com aquela calma?!!!... Já sabias que eles eram turras?!».
É evidente que, ao momento, ele não sabia disso. E nas várias vezes que falámos sobre este momento, nestes 35 anos, sempre nos divertimos com a história. Que poderia ter sido uma tragédia!!! Não foi, se calhar, porque fomos todos, começando por mim, leviamente e generosamente irresponsáveis, embora cumpridores da missão de que estávamos incumbidos.
Algum tempo depois, no Quitexe, disse-me um dos angolanos desse princípio de tarde de 4 de Novembro de 1974: «Nós espensou c´os furrié ias matá a gente...».
Eu sei que nunca matei ninguém!
Os homens do FNLA que nesse dia achámos estavam armados de armas de fabrico checo e chinês, com uma bala na câmara e mais meia dúzia delas num saco de plástico pendurado na cinta, feita de um cordão vulgar!
- FNLA. Frente Nacional de Libertação de Angola, liderada por Holden Roberto. Soube dele (supostamente) ter estado, clandestino, num restaurante de Carmona (Uíge) em Agosto de 1974.
- UNIMOG: Viatura militar de transporte (mais ou menos) rápido.
- CT: Marca de tabaco, ao tempo muito popular em Angola e muito usado nas Forças Armadas.
- CAPITÃO FALCÃO. José Paulo Montenegro Mendonça Falcão, oficial de operações do Batalhão de Cavalaria 8423, sediado no Quitexe. Mora em Coimbra.
4 comentários:
Viegas, é uma maravilha recordar estes tempos da n/ juventude e eu fiquei emocionado ao ler esta narrativa desse dia 4 de Novembro, embora não me lembre do Pires, eu era da 2ª. companhia.
Continue a fazer isso e diga-me se tem havido reuniões do pessoal, pois nunca mais disse nada.
António Augusto
Viegas:
Estás a ver como te recordaste de mais uma passagem da nossa vida em Angola? E que passagem que perigo corremos!... principalmente tu que foste directamente para os "cornos do touro". mas felizmente correu tudo bem e aqui estamos para as recordar.
Mas há mais, tu tens muitas como essa para relatar, até dá jeito para recordar aqueles tempos, não é verdade ?
Vai escrevendo que nós vamos lendo.
Tenho que te mostrar a história da unidade, quando estiver contigo já a levo.
Um abraço
J. Pires
Bragança
Meu caro Pires:
Este dia deve ter sido o da maior aventura da tua vida! Lembro-me bem dos teus olhos de espanto, quando, de vez, te apercebeste no que estávamos metido.
Mas foi um dia feliz. Se em outras alturas não o soubéssemos, nesse 4 de Novembro de 1974 tivemos a certeza que a coragem não era valor e sentimento vão para nós.
Abraços para os teus!
E para ti!
CV
Meu caro Pires:
Este dia deve ter sido o da maior aventura da tua vida! Lembro-me bem dos teus olhos de espanto, quando, de vez, te apercebeste no que estávamos metido.
Mas foi um dia feliz. Se em outras alturas não o soubéssemos, nesse 4 de Novembro de 1974 tivemos a certeza que a coragem não era valor e sentimento vão para nós.
Abraços para os teus!
E para ti!
CV
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