quarta-feira, 29 de abril de 2009

Manhãs de Outubro na Árvore Vaidosa...

Pose fotográfica, a 15 quilómetros da Árvore Vaidosa
O Pelotão de Reconhecimento, Serviço e Informação - que por lá baptizávamos e popularizávamos como PELREC, em sigla abreviada... - era o único pelotão operacional da CCS, todos os meses «casado» de serviços externos com um outro, que vinha em destacamento para o Quitexe.
Isto, na prática, queria dizer que duas ou três vezes por semana tínhamos patrulhamentos na zona, ou operações (numa dimensão regional e envolvendo outras companhias e batalhões). As missões eram religiosamente transmitidas pelo capitão Falcão, horas antes, e lá seguíamos nós, pelos ontens da madrugada mais próximos da saída, acordar soldados e cabos, para «preparar e arrancar». Aos modos «ranger´s», tudo tinha de ser feito em três minutos: acordar, vestir, equipar e estar em cima dos unimogs, já com a ração de combate. E a verdade é que pouco tempo depois, os bravos cavaleiros do PELREC estavam uns ases nessa rapidez. E tinham vaidade nisso.
A 17 de Outubro de 1974, a missão era para os lados do Destacamento de Luísa Maria e lá pernoitámos. Rezava a lenda que a mata ao fundo, chamada de Arvore Vaidosa, seria local de um acampamento da FNLA. Que até teria um subterrâneo. Se assim era, ou não, nunca o confirmámos. O mais perto que estivemos foi já em vésperas de 1975 e apenas encontrámos rastos do que teria sido uma pequena aldeia, já abandonada.
Este dia tem uma razão especial para aqui ser chamado. O Neves, dos lados de Sintra, era soldado do PELREC e, por sofrer de epilepsia, ficava sempre de reserva no quartel, em serviços internos. Nunca saía! Na prática, sendo ele atirador de cavalaria, como era, carregava o luto do «gozo» e brincadeiras dos companheiros do pelotão, que o constrangiam com a sua alegada inépcia militar. «Não vales nada, ó Neves... Nem para dar um tiro!», arrimavam-lhe eles, descuidando-se do respeito que ele lhes merecia. Nem era por mal, era por irreverência.
O António cansou-se de querer ir e foi neste dia. Deslumbrou-se com o cheiro da mata e dos bananais, de olhar os cafezais enormes, enormes de quilómetros, de entrar nas fazendas e ver os corpos de ébano das mulheres a bombalearem-se nos terreiros. De olhar e rir-se em gagalhadas felizes, com o saltar dos macacos de árvore em árvores, em gritos de cio!
Quis voltar mais vezes, voltar sempre!!! Mas não voltou mais! Uns dias depois, vítima da epilepsia que o ralava, disparou involuntariamente uma rajada na caserna e teve de ser observado por essa causa! Chorou sei lá quantas vezes por não mais ter ido!
- CAPITÃO FALCÃO: José Paulo Montenegro Mendonça Falcão, capitão e oficial de operações, de Coimbra. Encontrei-o há uns dez anos, já tenente coronel.
- NEVES: José Coutinho das Neves, soldado atirador do PELREC. Era da zona de Sintra.

terça-feira, 28 de abril de 2009

As cucas, as nocais e os pratinhos de camarão...

1º.s Cabos Pais e Emanuel, com o furriel Viegas
ao meio, no bar do Rocha, no Quitexe, em 1974

Angola é terra de calor. Muito calor!! E sede!! E cerveja!! As Cucas, as Nocais, mais tarde as N´Golas, - esquecia-me das Ekas... - eram as dessedentadoras de serviço, nas tardes e noites fora da nossa farta sede! Uma das primeiras coisas estranhas - aqui, pelo lado mais agradável!... - da nossa chegada a Luanda foi estarmos nos bares e esplanadas, pedirmos cerveja e trazerem um pratinho de camarão. Isso não aconteceu comigo, que nos primeiros dias de Angola, em Luanda, andei em visitas de família, e não fui cliente da cerveja em estabelecimentos hoteleiros. E nem sequer gostei muito da primeira que bebi!
A verdade é que toda a gente falava nisso, ampliando o gosto e o prazer da mariscada saciando-se consoante a largueza da carteira. O Pires, o de Bragança, veio agora lembrar-se a sua primeira ida à esplanada Amazonas, na baixa de Luanda, e de pedir umas canecas de cerveja, a que o empregado retorquiu, perguntando se não queriria "canhângulos"?
Canhângulos?! Pois que «sim, senhora, sejam lá canhângulos, se forem canecas como as daquela mesa...», respondeu ele, apontando para o lado. E lá veio um pratinho de camarão. «Ficámos nós estupefactos, perguntando-nos uns aos outros se o camarão seria oferecido como em Portugal se davam os tremoços?!», recorda o Pires, dando este facto como «sinal evidente da fartura que por lá havia». Em Angola!
O Quitexe, já aqui contei, tinha bastantes bares e restaurantes - muito famoso, o Rocha, entre outros, onde os militares passavam horas na morte do seu tempo, debicando petiscos e muitas vezes «enxarcando-se» de cerveja!!
Os da foto, comigo ao meio (repare-se que estava de um princípio de bigodaça!...), são o Pais e o Emanuel - numa qualquer conversa sobre a actualidade de então, vá lá agora saber-se do quê. E lá estão as Cucas e os camarões! Um monte de cascas de camarões!!! Reparo melhor e vejo que são Nocais, uma das outras cervejas de Angola! Por aqui também se vê por que a tropa deixou tantas saudades a tanta gente!

- CANHÂNGULOS. Canecas de cerveja, sempre com mais de meio litro. Pedir um canhângulo, era sinal de força e de ser... homem! Beber dois ou três, quatro ou cinco, era para o que... imaginam!
- PAIS. António Correia Lourenço Pais, 1º. cabo rádio-montador. Era de e vive em Viseu.
- EMANUEL. Emanuel Miranda dos Santos, 1º. cabo de transmissões (cripto), da Gafanha da Nazaré, perto de Aveiro. Vive nos Estados Unidos.

Clique na foto, para ampliar.

sábado, 25 de abril de 2009

A aguardente de cana do Pires do Montijo...


Os furriéis Abrantes (de Castelo Branco), Pires (do Montijo) e Viegas,
numa sanzala dos arredores do Quitexe

Sempre me interessei pela etnografia e culturas populares. E pouco percebendo disso (ainda hoje!...), não me dispensei de, em Angola, aproveitar tempos «mortos» do nosso dia-a-dia para conhecer alguns hábitos e tradições locais - as mais tribais que pudesse.
A foto onde apareço com o Abrantes (furriel de Castelo Branco, na altura acidentalmente colocado no Quitexe) e o Pires do Montijo foi tirada numa sanzala dos arredores da vila, num qualquer dia de Setembro de 1974, quando fomos querer saber porque é que os familiares de um morto faziam festa, com danças, músicas e cantares, em vez de luto. O luto que nós conhecemos por cá!
Poupando palavras, que aqui até viriam a despropósito, era esse o ritual da tribo - e devo confessar que todos ficámos algo chocados com tal tradição. E intrigados!
O Pires, que era bonacheirão e generosamente bem vivido lá pelos lados do Montijo e Lisboa, provou nesse dia uma aguardente de palma (ou era de cana?), fortíssima, da que se bebia a rodos na festa do luto. E de tal modo bebeu que veio a cambalear para o quartel e teve de levar soro na enfermaria. Dormiu essa noite para aí umas 16/17 horas seguidas.
- «Ó Viegas... - perguntou-me ele, batendo-me à porta do quarto, já depois do jantar do outro dia. «O que é que me aconteceu, pá?!...».
Não se lembrava de nada, nem do piscar de olhos que na véspera repetidamente fizera a uma cabo-verdeana de encher a alma e o desejo, por quem se andava a deixar pingar de amores.
O miúdo com o pneu era o Agostinho, Agostinho Papélino... Com uma mangueira de jardim tocava o hino nacional, todos os toques da tropa e o raspa. Uma maravilha!!! Fazia de engraxador para ganhar a vida, mas não engraxava coisa nenhuma... Órfão, comia todos os dias no quartel e era um espécie de mascote dos «bravos Cavaleiros do Quitexe»!!! Quis vir comigo para Portugal.
- PIRES: Cândido Eduardo Lopes Pires, natural do Montijo, furriel sapador. Actualmente, mora em Niza.
- ABRANTES. Joaquim Abrantes, furriel miliciano ao tempo colocado na CCS do BCAV. 8423. É da zona de Castelo Branco.
- CASAS: Repare-se no tipo de construção das casas das sanzalas, típicas de África (a da direita), já em tijolo a que, à esquerda, se vê parcialmente.
- BIGODES: Note-se que os três furriéis usavam bigode. Até eu!! Modas do tempo! E eu de óculos, o que não era de todo normal!

quinta-feira, 23 de abril de 2009

A capela, a missa e a missão do Quitexe


A capela de Quitexe, numa foto de 2004/5. O pequeno templo, pelo que li ao tempo (antes e depois de lá chegar), foi local de refúgio de muitos colonos e famílias. A frontaria estava cheia de nomes de vítimas dos primeiros dias das acções dos homens da União do Povo de Angola (UPA).
Ao lado direito da capela (não se vê na foto), ficava a missão, onde, com cumplicidade do pároco (não me lembro do nome) tínhamos grandes debates - sobre religião (é certo) e também sobre política e coisas e causas da juventude. Lá se juntavam os poucos jovens brancos que durante a semana estudavam em Carmona - quase todos raparigas! Em quem, de malícia, pousávamos os olhos, de ver e desejar!
Retenho a Dussol, assim chamada por ser esguia, bonita e bem "desenhada", como a garrafa deste sumo angolano, «parente» da Sumol metropolitana. E bem saborosa, diga-se de passagem. E, entre outras, as irmãs Morais, por acaso de Águeda - de Arrancada do Vouga. 35 anos depois, vale a pena lembrar como era agradável ir à missa e à missão!
- MORAIS: Tentei agora saber por onde pararão as irmãs Morais. Ninguém me soube dizer, nem familiares próximos, que procurei. Supostamente, morarão na zona de Torres Vedras.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Os aerogramas e o amor que voava de cá para lá...

Jardim do Quitexe, na frente da Administração
(civil), Furriéis Viegas e Neto - em Janeiro de 1975.
Clicar na foto, para a ampliar

O Quitexe era uma vila muito agradável, com vários cafés e restaurantes, hospital, cinema..., muitas lojas comerciais. E fica(va) a 40 quilómetros de Carmona (Uíge), uma cidade ainda com (muitas) mais respostas para quem, aos 21 para 22 anos, tinha sonhos e desejos que aqui não se contam.
O facto de eu e o Neto sermos de um pelotão operacional, dava-nos algum descanso intervalado - que aproveitámos para lazer. O Neto, ao tempo, vivia acesa paixão com a Eunice (Ni), namorada de então e mulher de hoje, e algum do nosso tempo era passado em leituras declamadas e cheias de mímica do correio que nos chegava de Portugal.
Eu por mim, sem namorada, era talvez quem mais correio recebia! Brincava, por isso, com aquela malta toda - que se enlutava de cada tarde em que, chegado de Carmona, o SPM nã trazia endereço para algum de nós. Era o SPM que nos matava saudades, em aerogramas escritos e reescritos, por tudo o que era canto e lado - com corações desenhados, de setas atravessadas! Em cada tarde que algum de nós não recebia correio, era desgosto que se chocava na alma!
O Neto, o José Francisco Rodrigues Neto - o Xico, para mim... - assolapava-se de amores, media as palavras a paquímetro, torneava-as, burilava-as, recitava-as, ensaiando os seus recados de paixão para a Ni! Esta fotografia foi tirada expresamente para enviar a Ni! Fiquei eu com esta cópia!
A tropa não matava as paixões! Nem falecia o desejo de escrever aerogramas. Milhares, de lá para cá, levando e trazendo as boas e as más notícias. Selando os e muitos amores!!!
- AEROGRAMA: Um aerograma era uma espécie de carta que se enviava por correio aéreo, sem necessidade de sobrescrito ou selo. O custo era o de compra. E barato, para aí dois tostes (um quito do escudo). Foi criado pelo Movimento Nacional Feminino e era o meio de correspondência usualmente utilizado por e para os militares.
- SPM: Serviço Postal Militar. O meu tinha o nº. 8240.


segunda-feira, 20 de abril de 2009

A entrada do Quitexe, via Luanda..., e o GE Quatorze

Entrada do Quitexe, via Aldeia Viçosa - de quem vai de Luanda para Carmona (Uíge). A nossa primeira visão sobre a vila, quando lá chegámos, a 6 de Junho de 1974, terá sido muito parecida com esta. Foi um consolo: as imagens que nos falavam, sobre os sítios de guerra para onde iríamos, eram as de «buracos» irrespiráveis, onde os cheiros eram de sangue e pólvora e o dia-a-dia de dramas e medos de explosões e ataques.
Tínhamos já passado por Vista Alegre e Aldeia Viçosa e folgáramos a ansiedade: afinal, não eram «buracos» nenhuns! O Quitexe até nos parecia bem melhor.
Dois dias, ou três?, soube de uma «rifa» que me calhara: a coordenação de dois Grupos Especiais - os GE! «Aviso-te de uma coisa: quando não entenderes a linguagem deles, age...», disse-me o Casares, furriel de Chaves que eu ia substituir.
Agir como? Ele explicou-me: «Podem estar a tramar alguma coisa contra ti. Amanhã vou mostrar-te uma coisa...». Não foi ao outro dia, mas dois depois. E «mostrou», num bar ali à direita desta entrada da vila. Era João, João Quatorze, um negro enorme, pai de uma dúzia de filhos, homem de três ou quatro mulheres, chefe de um dos dois grupos de GE adidos à CCS do Batalhão de Cavalaria 8423.

«Tenho mai´esdinheiro nos puto que tu!!!», informou-me ele, no seu sotaque e em tom de quem me queria atemorizar. E atemorizou. Olheio-o e ouvi-o com muita desconfiança. A minha noite do Quitexe que se seguiu a este momento foi passada em largos pensamentos e interrogações, até aí por volta das duas da amanhã. Depois, lá adormeci.
João Quatorze viria a revelar-se um excelente colaborador, ora no comando do «seu» GE, ora, e principalmente, na delicada fase do desarmamento e desmobilização dos grupos. Sempre foi leal!
Encontrei-o em Luanda, por volta de 15 de Agosto de 1975, na avenida D. João II - era ele comandante de um pelotão militar, creio que com a patente de capitão. Tinha aderido ao MPLA. «Subi nos vida, esfurrié...», disse-me ele, com os olhos a rir de gosto e a apontar-me os galões. Fomos beber cerveja Nocal, à messe de sargentos que era ali mesmo ao lado, na avenida dos Combatentes. E nunca mais o vi!
- Puto: Designação que, em Angola, era vulgarmente dada a Portugal metropolitano.
- FOTO: É de Jorge Cruz. Clique nela, para a ampliar.

domingo, 19 de abril de 2009

O Cruz de Cardigos e a noite de 23 para 24 de Agosto

Furriéis Viegas e Cruz, furrieis da CCS na avenida principal
do Quitexe, em Janeiro de 1975


Angola foi um tempo e um chão de perfumes e emoções novas, para tantos jovens (como eu) que deixaram o calor e o afecto das suas casas e famílias, dos amigos e paixões da cá, para voarem ao encontro de um destino que nos estava marcado, desde anos para trás. Mas desconhecido!
Angola foi tempo e espaço de ganho de novas e profundas amizades, que perduram no tempo, até 35 anos depois!, noivadas e casadas com o futuro que agora conhecemos e vivemos! E nada melhor que uma amizade sólida e solidária, que não pergunta porquê quando se tem de dar e afirmar em actos.

O Cruz, o furriel Cruz, é uma dessas singulares e sólidas amizades que a tropa em Angola «pariu» para o futuro de hoje. Mais velho um ano, era o nosso «mais velho». Vivido na capital Lisboa, sabia e tinha histórias que eu não poderia ter - ido de uma aldeia, ainda que povoação litoral (Ois da Ribeira, perto de Águeda). Histórias que partilhávamos em longas e bonacheiras conversas das tardes e noites quitexianas, depois carmonianas.
Alguma razão, de intimidades e afectos, nos levou a gozar as férias juntos - em Abril de 1975. Corremos Angola, aos abraços de familiares e amigos, por Luanda, Nova Lisboa, Benguela, Lobito, Alto Hama, Silva Porto, Gabela!

Lembro-te Cruz, o quando tomando banho no Hotel Bimbe, de minha familiar Cecília, notaste o ferimento que eu tinha na coxa direita. O teu susto preocupado, a querer saber o que tinha sido. Um ferimento de bala, a noite de 23 para 24 de Agosto anterior. E como te confortaste quando te disse que tinha sido agarrado o atirador - obra da audácia permanente e coragem sólida e sempre solidária do (alferes) Garcia!

Que esteve ele (o atirador) detido o Posto 5, que o cabo Florindo (enfermeiro do Cartaxo) mal se vira para arrancar a bala da coxa, comigo deitado na sombra de um imbondeiro imenso, na Baixa do Mungage, por imperícia provocadas pelos nervos. De como eu a tirei, eu mesminho, quando a carne quente já desmaiava de dor!
Aqui te deixo, Cruz, recordando este episódio, a graça de te ter como amigo!
- Furriel Cruz. António José Dias Cruz, furriel miliciano de rádio-transmissões. Natural de Cardigos (Mação), mas ao tempo radicado em Lisboa, como hoje.
- Cabo Florindo. José Manuel Nunes Florindo, 1º. cabo enfermeiro. Natural do Cartaxo, era pegador de touros.

sábado, 18 de abril de 2009

O corajoso alferes Garcia e o 1 de Junho de 1975

O hospital civil de Carmona (em cima) e alferes Garcia e furriel Viegas, no dia 10 de Outubro
de 1974, momentos antes da saída para mais uma operação militar, no Quitexe (em baixo)

O alferes miliciano Garcia não era homem de olhar para trás, se perigo se previsse, ou sentisse, na hora dos medos. Transmontano, de Pombal de Ansiães (Carrazeda de Ansiães), era exemplo permanente de coragem e determinação. Militar bem preparado, também ele viveu e sentiu as exigências do segundo turno de Operações Especiais (Ranger´s), no CIOE de Lamego - como eu, o Neto e o Monteiro. Era o nosso comandante de pelotão.
Com ele, vivemos as primeiras diferenças entre a paz e serenidade do aquartelamento e os temores que se nos levedavam no peito, sempre que galgávamos os trilhos e picadas semeadas de ameaças - de arma em riste, imaginando e temendo que, no horizonte misterioso e a perder de vista, um qualquer perigo nos amortalhasse.
O alferes Garcia era generoso e valente, nunca um passo se lhe recuou, para fugir de qualquer perigo. A 1 de Junho de 1975, Carmona era um inferno de fogo. A FNLA e o MPLA lutavam quase corpo a corpo, ensaguentando e enlutando a cidade. Obuses, morteiros e granadas rebentavam a todo o instante. As rajadas faziam estranhos coros nos céus e as Forças Armadas Portuguesas tinham a missão de proteger os civis. Missão nada fácil, numa cidade que não tinha a tropa em grande cuidado e respeito.
Ao passar frente ao liceu, nessa alvorada de domingo, a berliet em que seguíamos para o BC12 foi atacada e uma rajada silvou sobre as nossas cabeças. «Filhos da p...», ouviu-se um grito de aflição. Chegámos, por momentos, a pensar que o Cândido Pires tinha sido atingido. Não tinha.
A missão da tropa portuguesa era proteger os civis e garantir a segurança das posições-chave da cidade: abastecimento de água, a electricidade, as entradas e saídas, o aeroporto, o hospital, por exemplo. Calhou-nos o hospital, já para fim dessa tarde de domingo, depois de recolhermos centenas e centenas de civis, alojando-os na parada do BC12. Ao hospital, chegavam dezenas e dezenas de feridos. E alguns mortos. Nenhum «fnla» ou qualquer «mpla» lá poderia entrar, fosse a que pretexto. Muito menos se estivesse armado. As nossas instruções não seriam poupadas.
«Sabes se há feridos, se há mortos dos nossos?!...», perguntei eu ao alferes Garcia, acabado tinha ele de falar, via rádio, com o comando do BC12. Não havia, entre a tropa portuguesa. Nesse momento, sucessivas rajadas faíscaram nos telhados de zinco (?) do hospital. Claramente disparadas de muito próximo de nós. Estávamos a ser atacados?! Rastejou o Garcia, com um sinal para mim, convencionado. Latejávamos, ambos e as duas dezenas dos nossos soldados. Eu a três, quatro metros dele.
«Comanda, Viegas!...», gritou-me ele. E avançou, a rastejar. Atrás de uma pequena árvore de jardim, numa das entradas do hospital, estava um homem do MPLA. Esfacelado de dor, de vísceras aparentemente soltas, rosto molhado de sangue!!! Pegou nele o Garcia, gritando-me, de novo: «Segurança!!!...». Os 30 metros até à entrada do hospital foram corridos em breves segundos! O homem foi salvo!!! As rajadas eram para ele, disparadas de um prédio! Apanhámos os homens, que ficaram presos no BC12, até que outro destino lhe foi dado!
Nesse domingo de quantas emoções, houve correio para mim, quando a noite já ia grávida de ainda mais medos: minha irmã Ana Maria anunciou-me, por aerograma, que ia ser mãe pela segunda vez. Por uns momentos, pensei na ironia da vida: iria nascer a Marta (em Agosto seguinte) e eu, e aquela tanta gente, num cenário de morte, que nos espreitava a cada momento!
- Garcia: António Manuel Garcia, alferes miliciano de Operações Especiais (Ranger). Como já aqui foi dito, era agente da Polícia Judiciária e faleceu em 1977 (ou 78), vítima de um acidente de viação, na estrada entre Viseu e Mangualde.
- Furriel Pires. Cândido Eduardo Lopes Pires, furriel miliciano sapador, natural e ao tempo residente no Montijo. Actualmente, mora em Niza.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Secretaria e comando da CCS do BCAV 8423

Rua transversal da estrada Luanda-Carmona, em foto de 2005. Ao fundo, vê-se o edifício onde, de Junho de 1974 a Janeiro de 1975, funcionaram a secretaria e o comando da CCS. O comandante era o capitão António Martins de Oliveira. O tenente José Elói Borges da Cunha Mora era o segundo-comandante.
Chefe da secretaria era o 1º. sargento Luzia (José Claudino Fernandes Luzia), que tinha o furriel Monteiro (José Augusto Guedes Monteiro) como «ajudante». Lá trabalhava também o furriel vagomestre: o Dias.
Num pequeno espaço funcionava o gabinete de apoio aos GE (Grupos Especiais), voluntários militarizados ao serviço das FA portuguesas. Fui responsável por dois deles, numa "herança" recebida do furriel miliciano Casares, da unidade anterior - a que o BCAV 8423 substituiu. Era de Chaves e foi guarda-redes de futebol do Grupo Desportivo desta cidade.


- Capitão Oliveira. António Martins Oliveira, oriundo de Viseu e com carreira militar que o levou de sargento (estudou na Escola Central de Sargentos, de Águeda) a capitão. Ainda o conheci como major e a comandar o DRM de Aveiro, nos anos 80.
- Tenente Mora. José Eloi Borges da Cunha Mora. Natural de Lisboa, frequentava o curso de Direito em regime de voluntário, já com mais de 50 anos. Era casado com uma senhora indiana.
- Furriel Monteiro: José Augusto Guedes Monteiro, furriel miliciano de Operações Especiais (Ranger). Natural de Vila Boa de Quires (Marco de Canaveses), está aposentado dos Transportes Colectivos do Porto e tem uma empresa de prestação de serviços na área da electricidade. Mora em Paredes (Porto).
- Furriel Dias. Francisco José Brogueira Dias, furriel miliciano de Alimentação (vagomestre), natural e residente no Porto, actualmente bancário.

Eu e o Chico Neto, os furriéis gémeos do Quitexe!

Neto e Viegas, furriéis «gémeos» do BCAV 8423. Ambos
de Águeda e de Operações Especiais (Ranger´s)

Chico Neto e eu, os furriéis almas-gémeas do Quitexe. Tínhamos tudo de diferente e tudo de igual.
Ambos de Águeda, ele filho de empresário industrial e eu de agricultores bem modestos.
Ambos alunos da actual escola secundária Marques de Castilho (antiga industrial e comercial, a EICA, ao tempo), ele da indústria, eu do comércio.

Ambos do Pelotão de Reconhecimento e Serviços, ele mais impulsivo, eu mais mais racional.
Ambos furriéis Ranger, ele mais forte no tiro de precisão; eu mais capaz no de improviso!
Ambos formados no CIOE de Lamego, ele oriundo da infantaria, eu de cavalaria!
Ambos muito intervenientes no dia-a-dia da Unidade, ele mais arrebatador, eu mais soft (como se diria hoje) e preciso no debate de ideias.
Ambos muito reivindicativos, ele mais generoso no dia-a-dia com os soldados; eu mais exigente e imperativo!
Ambos solidários, ele mais mãos largas, eu mais coração aberto!
Ambos valentes (deixem passar esta gabarolice...). Se um diz esfola, outro diz mata!
A nossa primeira operação militar, pela mata adentro das redondezas (80, 90 quilómetros, 120?) do Quitexe, quebrou-nos os galhos do medo que nos roía a alma. No momento de saída do quartel, para os lados da Fazenda Luíza Maria, falámos alguns minutos com os soldados, iludindo os nossos medos.
Fomos francos com eles, nós éramos amigos deles e sentíamos troco desse sentimento: «Pode acontecer-nos tudo, foi para isto que nos preparámos em Santa Margarida. Não há que ter medo...», disse-lhes eu, como que numa avé-maria de esperança, ou num credo de convicção e fé para as oito/dez horas que tínhamos pela frente.

Ele quis apresentar o grupo ao Alferes Garcia, nosso comandante de pelotão. «Tenho de ser eu...», lembrei-lhe, invocando-lhe «hierarquias». Apresentei: «Meu alferes, dá licença?! Apresenta-se o Pelotão de Reconhecimento, Serviço e Informação». Blá, blá, blá!!! As normas!
Palada dada e recebida, estava o grupo em sentido na parada do aquartelamento, eram para aí umas quatro horas da manhã, com algum frio de cacimbo, quando ao Chico se lhe soltou a língua: «Meu alferes dá licença? Está apresentado um pelotão de ranger´s. Somos todos ranger´s!!!". A voz dele era firme, determinada, o rosto era um esgar em que adivinhava coragem, empolgando os cabos e soldados que connosco iam partir para um destino semeado de interrogações. Quem saberia se de sangue e dramas!
Fomos e viemos, suados de palmilhar quilómetros e de botas encharcadas da lama vermelha colada nos trilhos dos medos que galgámos, pela madrugada fora, até ao quase pôr do sol que nos espalmou alma, na chegada ao quartel!
Nesse dia, acreditem, já de banho tomado, ainda o sol se punha avermelhado nos céus de Angola, quando fomos tirar esta fotografia. Não me lembro o dia, por finais de Junho de 1974! Mas sei que, nessa noite, comi camarão pela primeira vez na minha vida! O Chico não quis vestir o camuflado, para se sentir «mais civil!».
Sempre fomos cúmplices, os dois, por toda toda a nossa jornada africana! Irmãos! Almas gémeas, em todas as diferenças!

- Alferes Garcia. António Manuel Garcia, natural de Pombal de Ansiães (Carrazeda da Ansiães). Oficial miliciano de Operações Especiais (Ranger) e nosso comandante de pelotão. Faleceu em 1977/78, era agente da Polícia Judiciária, num acidente de viação, entre Viseu e Mangualde.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

O encontro com guerrilheiros da FNLA na Mata do Quipemba

Furrieis Viegas e Pires, em cima, na sanzala do Dambi Angola, Mata do Quipemba, a 4 de Novembro de
1974. Em baixo, um guerrilheiro da FNLA. Este encontro terá sido um dos primeiros entre as FA portuguesas e as forças dos movimentos de libertação.

Amigo meu da tropa africana, o Pires de Bragança, enviou-me mensagem por se falar aqui, neste blogue, do mesmo tempo de ele, com o meu, no chão angolano. «Tens de pôr mais fotografias da malta, contar mais histórias....!», berrou ele comigo, no seu jeito transmontano de falar e sentir as coisas.
Tenho várias histórias da minha história com o Pires de Bragança, que era furriel miliciano de transmissões e apareceu em Santa Margarida, ainda cabo miliciano, na nossa mobilização pré-Angola, chegado a uma segunda-feira de carnaval. Nós já éramos veteranos de «guerra», experimentados militares da IAO (Instrução Altamente Operacional) e gozávamos à fartazana com os «maçaricos» que chegavam. E lá chegou o cabo-miliciano Pires.
«Ide-vos f...», reagiu ele, chegado com o Rocha, respondendo às nossas provocações. Fartámo-nos de rir.

Já em Angola, no Quitexe, homem de transmissões, «cansou-se» de nos ouvir, aos operacionais, falar das nossas lendas de guerra, dos nossos heroísmos das picadas e das matas cerradas de Angola, enfrentando os perigos e os medos das situações que se embrulhavam no pó quente e vermelho do chão angolano. Blá, bla, blá...
Um dia, ou uma noite?, provocou-me, já provavelmente farto de nos ouvir contar histórias e do seu lazer aquartelado. «Gostava de ir convosco numa operação...».
«Só se o capitão autorizar...», disse eu.
Ir numa operação, sem constar do plano da dita, não era coisa que se cheirasse. Ou pudesse fazer. Era contra todas as regras de segurança! E as NEP´s?!!!
«Vê lá isso...».

Dias depois, a 3 de Novembro de 1974, recebi uma ordem de operação muito especial: sair às 4 da madrugada do outro dia para um possível contacto com guerrilheiros do FNLA. Quem sabia dessas coisas era, naturalmente, o Gabinete de Operações - que tinha os seus contactos, que eu não sei contar.
Disse eu ao Pires, de Bragança: «Queres ir amanhã?!».
- «P´ra onde?», perguntou ele.
- «Depois sabes...!», disse eu. Eu não podia dizer. E acrescentei-lhe: «Tens de ter autorização do capitão Falcão».
Acabei por ser eu a pedir e lá foi o furriel Pires, o das transmissões. Havia outro Pires, o sapador, do Montijo.
O objectivo era a aldeia (sanzala) do Dambi Angola, na Mata do Quipemba, entre Quitexe e Aldeia Viçosa. Lá chegámos, de dia. Pelo caminho, poupando palavras, passámos incólumes numa vigia dos «turras» (um deles apontando-nos uma arma, de cima de uma árvore). Caíria, a tiro nosso, caso esboçasse qualquer gesto. O Breda, condutor-auto, suava frio de ansiedades, e tremia, ao passar debaixo da árvore, conduzindo o unimog em que eu próprio seguia.
Chegámos à sanzala, num adro imenso, e os unimogs pararam em posições de segurança. Olhámos, era eu o comandante da força, e não tive medo. Se eles lá estavam, com eles falaríamos. Era ao que íamos. Levávamos grades de cerveja e tabaco, aconselhados pela Acção Psicológica. Faltava «descobrir» o inimigo, misturado entre as gente da sanzala.
Saltei do unimog, sem tirar as divisas do camuflado. Provocador, digamos: «Sou o furriel Ranger!...». Manias!! Nem falar!!! E avancei, passo a passo, de mãos tensas, caídas nas ancas, a direita segurando a G3.
«Posso levar um tiro...», sentia eu. Do cinturão, penduravam-se granadas defensivas, prontas a estourar. A G3, de resto, estava armada com o dilagrama, para o que desse e viesse e seria letal, mortalíssimo; dilagrama que eu dispararia, em qualquer caso.

Um passo meu, em frente, era um passo atrás dos populares.
«Boa tarde, somos amigos, vamos falar...», gritei eu. E voltei a gritar, mais um passo e outro! Confesso que meio a medo.
Poupando palavras, confraternizámos nessa tarde. Tarde em que o grupo da FNLA soube que tinha havido uma revolução em Lisboa - sete meses antes.
Beberam os fnla´s cerveja, depois de nós bebermos. Fumaram os CT depois de alguns de nós. E tirámos fotografias.
Dizia o Pires, no regresso: «Estes é que são os turras?!». Eram.
Eu (Viegas), era tratado por Veigas. Senti-me amedrontado! Eh, pá... afinal eles sabiam quem eu era.
Guardo do Pires, o seu desabafo no jantar de camarão e cerveja à farta, que ele pagou nessa noite, no restaurante do Rocha, no Quitexe. Mais ou menos isto: «Como é que saltaste do Unimog, com aquela calma?!!!... Já sabias que eles eram turras?!».
É evidente que, ao momento, ele não sabia disso. E nas várias vezes que falámos sobre este momento, nestes 35 anos, sempre nos divertimos com a história. Que poderia ter sido uma tragédia!!! Não foi, se calhar, porque fomos todos, começando por mim, leviamente e generosamente irresponsáveis, embora cumpridores da missão de que estávamos incumbidos.
Algum tempo depois, no Quitexe, disse-me um dos angolanos desse princípio de tarde de 4 de Novembro de 1974: «Nós espensou c´os furrié ias matá a gente...».
Eu sei que nunca matei ninguém!
Os homens do FNLA que nesse dia achámos estavam armados de armas de fabrico checo e chinês, com uma bala na câmara e mais meia dúzia delas num saco de plástico pendurado na cinta, feita de um cordão vulgar!
- FNLA. Frente Nacional de Libertação de Angola, liderada por Holden Roberto. Soube dele (supostamente) ter estado, clandestino, num restaurante de Carmona (Uíge) em Agosto de 1974.
- UNIMOG: Viatura militar de transporte (mais ou menos) rápido.
- CT: Marca de tabaco, ao tempo muito popular em Angola e muito usado nas Forças Armadas.
- CAPITÃO FALCÃO. José Paulo Montenegro Mendonça Falcão, oficial de operações do Batalhão de Cavalaria 8423, sediado no Quitexe. Mora em Coimbra.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

A principal rua do Quitexe, estrada de Luanda a Carmona

A rua principal de Quitexe, que corresponde à estrada que liga Luanda
a Carmona (Uíge), numa foto de 2005. Quantos dos nossos medos
por aqui se passearam em dias e noites de um missão que nos fez
mais adultos!? Quantos sonhos se semearam e colheram neste asfalto
misturado da terra vermelha de Angola? Há 35 anos!!!
Paralela, para a esquerda, era a avenida - onde se localizavam
as instalações militares.

O meu primeiro serviço no Quitexe

Viegas e Rocha, dois furrieis do Quitexe,
a 14 de Junho de 1974

O meu primeiro serviço, à ordem (como se dizia), foi a 14 de Junho de 1974: sargento de dia à CCS. Não vou dizer que encarei a missão com total serenidade e como exemplo de coragem. Não foi assim.
Preventivamente, digamos, tinha dois dias antes e por algumas horas, acompanhado o Neto, que se estreara na tarefa - além das coordenações do dia (dirigidas pelo oficial de dia, tenho ideia que o alferes Sampaio), também rondar os controlos dos postos de vigia da vila Quitexe. Eram vários e isolados, um deles a mais de um quilómetro, numa zona com um imenso ananasal.

Sabem o que é caminhar na noite, de arma aperrada, e ver, ao longe, uma mancha enorme, a parecer ondas do mar? Ondas que eram o campo de ananases, a perder-se de vista e de onde adivinhávamos perigos? Tudo isto era um mistério para para nós, na noite quente de uma Angola de desafios que ainda não conhecíamos bem?! Isto era um galgar de metros atrás de metros, de olhos abertos a sair das órbitas, como que querendo ver o que não queríamos, num tempo em que cada som é um medo que nos medra na alma! Lá fui eu, com dois soldados, o Marcos e o António, dois companheiros de muitas missões pelos trilhos e picadas da terra vermelha Angola! Correu bem, essa noite de «aventuras» e medos, e fomos comer pão quente com manteiga, para a padaria!
O dia nasceu de um momento para o outro, como quem abre uma cortina do quarto. Ficámos espantados! Os dias que passavam, na verdade e a cada dia, desenhavam-nos os mistérios e feitiços de uma Angola que nos iria apaixonar! Até hoje!


O furriel Rocha (Nelson dos Remédios da Silva Rocha), de
transmissões, natural de Gaia. Há pouco tempo, era técnico
de vendas e com ele me encontrei várias vezes!

terça-feira, 14 de abril de 2009

O tenente Mora !

Tenente Mora (oficial de dia) e furrieis Neto, Viegas (sargento de
dia) e Monteiro, com o cabo Soares, na frente da residência dos furrieis,
em plena avenida do Quitexe. Atrás, ficava a messe de oficiais.

O segundo comandante da CCS era o tenente Mora (José Elói Borges da Cunha Mora), de quem já aqui falei. Dispensado, obviamente, de fazer serviços, fez-se voluntário como oficial de dia. Ainda hoje penso que o fez para se afirmar como exemplo! Fez "estreia" comigo a sargento-dia, em finais de Junho de 1974.
Desse serviço, recordo uma cena: à meia-noite, desligava-se a luz pública e tinha de se ligar o gerador do aquartelamento. ÀS vezes e por uns escassos segundos, ficávamos sem energia. Pois o bom do tenente Mora insistiu que era um ataque do IN. Sabotagem!! Princípio de um bombardeamento! Eles estavam a observar-nos!!! Eles, eram os ditos turras (terroristas!). O IN!
"Não é nada, meu tenente!!! Não é!!...", dizia-lhe eu, tentando explicar-lhe o que na verdade se passava. Mas nada de o conseguir convencer!
Estávamos frente à messe de oficiais, a ligação do gerador era mesmo ali, nas traseiras dos quartos dos furriéis, o militar encarregado desse serviço já ia ligar, era sempre assim! Mas nada convenceu o tenente Mora, que se atirou para o chão e começou a rastejar até um ponto de (suposta) protecção. A luz abriu-se, entretanto, com o gerador já a funcionar. Não chegou a haver "ataque" nenhum. Várias vezes comentámos, um e outro, esta história de uma noite de África! E sempre o tenente Mora se sorriu deste momento, algo caricatural!
- IN: Sigla usada para identificar inimigo.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Casa dos furriéis do Quitexe!!

A residência dos furriéis da CCS do Batalhão de Cavalaria 8423. Por ali viveram sete meses, entre outros, os furriéis Neto (de Águeda, como eu), J. Pires (Bragança), C. Pires (Montijo), Mosteias (Lisboa), Rocha (Gaia), Lopes (Vendas Novas), Farinhas (Amarante), Morais (Niza) - e os de outras companhias que pelo Quitexe passavam períodos de serviço.
O tempo era passado entre leituras e gravações de cassetes para as namoradas. E uns saltos ao bar, onde se matava a sede e cheirava a cozinha, para adivinhar a ementa. Outros, optaram por alugar quartos civis, na vila. O ponto de encontro diário, obviamente, era a messe - ao pequeno almoço, ao almoço, ao jantar, em discutidíssimos jogos de sueca e discussões sobre futebol e política. Política? Pois... que sabíamos nós?

Eu e o Chico Neto dormíamos no mesmo quarto, onde nos deitávamos em intermináveis conversas que nos "traziam" a Águeda, aos nossos amigos, à escola (a EICA, agora Marques de Castilho) aos nossos cheiros. Como se, lá, estivéssemos cá!!!!
Clique na foto,
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domingo, 12 de abril de 2009

Os furrieis Ranger da CCS do BCAV 8423

Foto na avenida principal do Quitexe. Os furrieis
Neto, Viegas e Monteiro, do Pelotão de
Reconhecimento e Serviços da CCS do BCAV 8423
A minha preparação militar passou pela Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, e continuou no Centro de Instrução de Operações Especiais (CIOE), em Lamego. A escola Ranger de sargentos e oficiais. Foi aqui, em princípios de Dezembro de 1973, que soube da minha mobilização para Angola. «Uma sorte», como se julgava ao tempo, pois seria a zona militar menos perigosa - comparada com a Guiné e Moçambique!
Por mim, ainda melhor era (e foi), pois em Angola tinha familiares e amigos (civis) e lá estava enterrado meu padrinho de baptismo, Arménio Tavares, no cemitério da Gabela, vítima de um acidente.
Mobilizados, também para CCS do BCAV 8423, foram o Neto (José Franciso Rodrigues Neto, de Águeda) e o Monteiro (José Augusto Guedes Monteiro, de Vila Boa de Quires, Marco de Canaveses). Apresentámos-nos os três no Regimento de Cavalaria 4, de Santa Margarida, a 23 de Dezembro desse ano. Aqui tivemos a Instrução Altamente Operacional (IAO) que antecipou a nossa partida para Angola. Para o Quitexe, depois para Carmona (a agora cidade de Uíge).
Fomos um trio divertido! Mais cá, que lá!

Nota: O amigo (ex-furriel) Neto atravessa momento dramático
da sua vida pessoal, com a morte da filha Maria Manuel,
de 30 anos, a 6 de Abril de 2009, vítima de um acidente.
Um abraço solidário!

sábado, 11 de abril de 2009

Avenida do Quitexe.

Avenida principal do Quitexe. A casa cor de laranja, à esquerda, era do Gabinete de Operações e onde estavam instalados o comando e, nas traseiras, a parada, oficinas e parque de estacionamento, camaratas e cozinha e refeitório. Como se vê, tinha (e tem) duas faixas de rodagem, separadas por um espaço ajardinado!
Clique na foto,
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sexta-feira, 10 de abril de 2009

O Quitexe, nossa casa de mais de 7 meses!

Avenida principal do Quitexe. O edifício cor de rosa era o da messe de oficiais da CCS do Batalhão de Cavalaria 8423. Logo à direita, era um edifício residencial de alguns furriéis milicianos, onde vivi de de Junho de 1974 a 2 de Março de 1975. Mais ao fundo, a casa da direita era o depósito de géneros e a messe e bar de sargentos. Quantos dias e noites ali, família e amigos e matámos saudades das nossas terras e sentimos (os operacionais) as ansiedades das operações militares que nos cabiam.
As companhias operacionais estavam instaladas em Zalala (1ª.), Aldeia Viçosa (2ª.) e Santa Isabel (3ª.).
Clique na foto,
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Viagem de Luanda para o Quitexe..


Estrada à entrada do Quitexe, via Luanda,
de quem vai de Aldeia Viçosa


A viagem de Luanda para o Quitexe foi de ansiedade e medos. E curiosidade. As berliets galgaram quilómetros atrás de quilómetros, cheias de jovens na descoberta de ares e cheiros novos. O capim!!! Todos ouvíramos falar do capim e das lendas que dele se contavam como cenários de guerra. E os macacos!!! As bananeiras! Percebi nesse dia a razão de por cá se dizer «andar a dormir à sombra da baneira». As folhas são enormes!
O tenente Mora (José Eloi Borges da Cunha Mora), hirto e tenso - que se viria a revelar singular comandante de tropas e nós, ao dia, mal conhecíamos - lá nos ia apontando terras de passagem, até que chegámos à que seria a nossa zona de intervenção, a ponte do Rio Dange. Mal imaginava eu o que, em Setembro seguinte, por ali viria a passar.
Depois Vista Alegre, Aldeia Viçosa e... Quitexe.
Surpreendentemente, era uma vila atraente, ponto de passagem da estrada de Luanda para Carmona. Tinha lido assustadora literatura sobre o Quitexe, antecipando o meu palco dos meses seguintes da minha vida. E o que lera era trágico, com descrições de tragédias, violências e ódios terríveis. Assente a bagagem, fui ver a capela: lá estavam as placas com os nomes de vítimas de 61.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

A partida e chegada a Angola...

O dia 29 de Maio de 1974 foi de chuva intensa, em Lisboa! E de grande ansiedade. No aeroporto, muitos de nós se estreavam em viagens de avião. E que estreia!! Para a guerra, quando Abril tinha acontecido mês e pouco antes e toda a gente pensava (e dizia) que nem mais um soldado iria para o ultramar. Mas fomos!! Era uma quinta-feira e, depois de uma falsa partida de dois dias antes, lá voámos nós no avião dos Transportes Aéreos Militares - os TAM.
Luanda recebeu-nos no alvorecer, com um calor imenso!!! E muita sede! Não gostei da primeira cerveja que bebi - uma Cuca. Achei-a leve, leve de mais e sem sabor!!! Bebida a correr, antes de saltarmos para as Berliets que nos levaram para o Grafanil, onde nos esperaram alguns dias de adaptação ao clima, aos cheiros e às gentes de Angola.
O comando do batalhão era o então tenente-coronel Carlos José Saraiva de Lima Almeida e Brito. Sem segundo comandante! O capitão António Martins Oliveira era o comandante da Companhia de Comando e Serviços - a CCS.
Nesse dia de calor e suores novos, ainda fui a correr, a uma unidade ao lado - onde estaria o Custódio, conterrâneo de Óis da Ribeira. Só o encontraria no sábado. Fui à procura de Albano Resende, outro conterrâneo - a trabalhar e viver em Luanda, com dois irmãos, o José Bernardino e o Manuel. Achei a namorada deste, numa retrosaria da baixa de Luanda. Jantei no Amazonas, a olhar da magia do nascer da noite africana espelhada na baía! Deslumbrado!!! E fui dormir ao Grafanil!
Foto tirada na primeira viagem
a Carmona, Julho de 1974



O furriel miliciano em Angola!!!

A minha adolescência e juventude foram fermentadas pelo estigma da guerra. Era certo, fossemos nós minimamente saudáveis, que não escaparíamos à guerra do ultramar. Na Guiné, em Angola, Moçambique... E havia, ainda, Cabo Verde, Guiné e Timor!
Isso aconteceu com milhares e milhares de portugueses que, sem perguntar porquê, vestiram camuflados e, de armas na mão e vencendo medos, galgaram fronteiras continentais para, de Lisboa a Timor, assumirem o chão que a Pátria definia. A mim, calhou-me Angola. No Quitexe e em Carmona (Uíge), depois ainda Luanda, integrando a CCS do Batalhão de Cavalaria 8423!!!
Sou o jovem furriel miliciano da foto! Aos 21 anos!! De Operações Especiais, os Rangeres!!! Não nos faltavam motivações!
Foto (obrigatória) tirada no campo Militar
de Santa Margarida, em Março de 1974.