terça-feira, 29 de junho de 2010

A revolta da Companhia do Liberato - 2




Estrada do Quitexe. A «espera» aos revoltosos da Companhia do Liberato
foi feita um troço parecido com este

O "pelrec" acomodou-se nos bancos duros e corridos dos Unimog ´s, esticando o pescoço por sobre a vila do Quitexe que ficava para trás. Soldados da guarnição levantaram-nos as mãos, como se dissessem adeus.
Ao passar pelo Posto 5, na saída da vila, o sentinela ergueu a arma e gritou uma qualquer coisa. Já fora da vila, galgadas as franjas dos aldeamentos, parou-se no asfalto por uns momentos. Tempo de confirmar bala na câmara, de sentir nas mãos o frio das granadas, de afinar miras, pontarias e ideias.
"É a nossa missão mais perigosa. Atenção, as ordens são para cumprir!!! Não queremos mortos...", disse o alferes Garcia, de voz segura, sem denotar o alvoroço e a ansiedade do momento, de arma virada ao céu, segura por cima do cinturão - em que apoiava a coronha. "Alguém tem medo?!!...".
Ninguém tinha medo!
Avançou a coluna até onde se esperaria o grupo de revoltosos - numa recta antes de se cortar para Santa Isabel. O silêncio da estrada de asfalto só era quebrado pelo barulho dos motores dos unimogs e nem os macacos que sempre nos divertiam a saltar de ramo em ramo, isso faziam. Como se estivessem de luto! Um deles, enorme, já adulto, pôs as mãos à cabeça à nossa passagem, como se adivinhasse alguma tragédia.
Parámos antes de Aldeia Viçosa, logo depois do Dambi Angola. Montou-se o sistema de segurança, os morteiros apontados, os obuses, e uma equipa de combate foi para o fundo da recta, a uns 150/200 metros. Tentaria convencer os revoltosos a não avançarem. Mas não abriria fogo. A abrir, seríamos nós!! 
O trânsito estava interrompido desde Aldeia Viçosa. E também não passava do Quitexe. Mas apareceu um camião carregado de café, talvez de alguma fazenda. Reagiu o motorista, que não queria parar. Tinha de fazer muitos quilómetros, para a descarga em Luanda. Teve de ser imobilizado.
A tensão entre o "pelrec" era visível, apalpava-se. Havia ansiedade, que mais levedou ao ver-se, ao longe, um movimento estranho. Afinal, era uma mulher negra que levava um molho de lenha à cabeça. 
"Cabrões, pá... Isto ainda vai dar merda... mas f...,-los todos!..", disse o Neto, com coronha da G3 pousada na bota direita e apalpando as granadas de mão. Eu, em pose muito igual, lembrei-lhe o nosso pacto de furriéis gémeos de Águeda: nunca um abandonar o outro. 
E ali estávamos, para o que desse e viesse! Sem querer amortalhar as nossas vidas!
Ouviu-se de longe, então, o roncar de viaturas a gasóleo. Seriam eles, os revoltosos!!!! - que viriam armados até aos dentes. E drogados, deles se dizia
"Calma, malta!!!...  Só há fogo à minha ordem!...", falou o alferes Garcia, calmo, de olhar sereno, com se nos estivesse a convidar para o rancho. Tal era a calma com que mentíamos ao medo e aos nervos que nos ansiavam a alma.
Foram dadas as últimas instruções à equipa avançada: "Nada de tiros...".
O som das viaturas, de longe, porém, deixou de se ouvir. 
O homem da rádio chamou o Garcia, havia mensagem. Para descanso de todos, e bem de todos!, e sossego de todos!!!, os revoltosos tinham decidido não avançar para Carmona. Livraram-se do nosso fogo e nós do luto da nossa alma! Quantos nós não iriam morrer!!! Quantos mataríamos?!
Regressámos ao Quitexe em ar de quase festa, mortos os estigmas que se nos tinham levedado nas últimas horas.
(continua) 

Sem comentários: