segunda-feira, 4 de maio de 2009

O sô Cabrita...

António Cabrita e Viegas, numa aldeia dos arredores
do Quitexe. Repare-se na curiosidade de eu estar com a farda nº. 1. Era raro.
Sempre preferia o camuflado!

O Cabrita era o soldado básico da CCS do BCAV 8423. O Cabrita era algarvio e pescador, dos arredores de Portimão, em sítio no caminho para o Alvor. O Cabrita era um tipo porreiro, humilde, prestável, sempre disponível para dizer sim a qualquer pedido.
O Cabrita era rapaz de sorriso solto, que lhe alargava a boca num trejeito de timidez quase adolescente; era bem disposto, ainda que introvertido. Muito introvertido! Por ser soldado básico, não entrava nas escalas de serviço, mas estava sempre de serviço. Precisava-se de alguma coisa, pois pedia-se ao Cabrita. Era preciso dar uma arranjadela nos quartos, o Cabrita ajudava. Não nos apetecia ir levar a roupa à lavadeira, pois lá ia o sô Cabrita! Era preciso limpar a arma, a G3, pois o Cabrita lá se punha de paciências para panos, óleos e escopetas.
O Cabrita não ia em patrulhamentos e operações, mas nós sabíamos que ele pensava sempre em nós, será que rezava?!, quando nos via sair para as picadas vermelhas da terra angolana.
O sô Cabrita, a um domingo de manhã, saía eu de serviço de sargento da guarda, estava à porta do meu quarto. «Então, Cabrita, há novidade?!...», perguntei eu - que me preparava para ir dormir até horas de almoço!
Havia! O Cabrita tinha uma namorada, rapariga de limpeza no Hotel Alvor - onde MPLA, FNLA e UNITA assinaram o primeiro acordo. "E então, qual é a novidade?". Pois!!! Ele queria dizer-lhe que gostava dela, etc. e tal. «Diga-lhe, homem!!!...», sugeri-lhe eu, meio a rir! O remédio, afinal, estava para cá de Roma!
Pois, mas havia um pormenor, um pormenorzito ali a encalacrar a coisa: é que o bom do Cabrita não tinha a 4ª. classe, nem sabia escrever. «Su sô Viegas me escrevesse o aerograma!...», sugeriu-me ele, envergonhando-se e corando, escondido num sorriso que convencia um morto.
«Pois, tá bem,... mas tem de esperar um bocadinho. Vou tomar banho, 20 minutos...!», disse-lhe eu, ainda não eram 9 horas da manhã.
Estava eu no chuveiro, limpando as lamas de suor que a noite de serviço me chapara no corpo, quando chegou o Chico Neto. «Ó pá, tá ali o Cabrita com um prego no pão e uma Dussol, diz que é para ti!...».
«Para mim?!», interroguei-me. Eu não tinha pedido nada. E então não é que era?! Sabendo o Cabrita como eu gostava daquele manjar matinal e estando a sair de serviço, entendeu ele oferecer-me o mata-bicho. Acabei por aceitar e, por essa manhã fora, escrevi-lhe a primeira declaração de amor à namorada, toda cheia de flores, amêndoas e nove-horas. Provavelmente a mais bonita declaração de amor do mundo!!! A de um soldado entrincheirado no sonho de conquistar a sua mulher.
Hoje, a namorada do Alvor é a sua mulher e, quando me conheceu, em 1995, fez questão de perguntar se eu é que era o furriel Viegas, se era eu quem escrevia os aerogramas que ela tão ansiosamente aguardava duas, três vezes por semana!
O Cabrita frequentou depois as aulas regimentais, ainda no Quitexe, e tirou a 4ª. classe. Hoje é proprietário (patrão) do barco de pesca «Dulce Helena», que se faz ao mar a partir do porto de Cascais. Onde ele mora, com a muher e filho - que é marinheiro.
- CABRITA: António Santana Cabrita, soldado básico, algarvio de Portimão. No primeiro encontro de antigos militares da CCS, na Estalagem da Pateira, em Fermentelos (Águeda), 1995, foi ele quem, em nome de todos os participantes, entregou a lembrança ao então general Almeida e Brito. Que era o tenente-coronel Carlos José Saraiva de Lima Almeida e Brito que nos comandou em Angola.
- MATA-BICHO. Regonalismo, que mais não era que o pequeno almoço em terras do Quitexe.
- DUSSOL: Sumo angolano, identico à Sumol de Portugal.

2 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns! Eis um potencial escritor de sucesso! Com essa força ritmica e essa brilhante forma de cinzelar os quadros do quotidinano, com o afiado cutelo da palavra que só você tem, seguramente que irá longe!
Nélson Leal

Anónimo disse...

Caro Viegas, dou-te os meus parabéns, o site está magnífico e lido 35 anos depois destas coisas todas até dá para emocionar.
Recebe o meu grande abraço.
Dias