sábado, 18 de setembro de 2010

Quando um militar procura amigos civis numa Angola em guerra

Cecíla Neves e Rafael Polido, com (o ex-furriel) Viegas, na Missão do Cuando, nos arredores de Nova Lisboa, em Abril de 1975.  Era um dos casais procurados nos últimos dias de Angola


A 21 de Agosto de 1975, uma 5ª. feira, escrevi a minha mãe para lhe dar conta de diligências que, a partir de Luanda, fazia para localizar alguns conterrâneos de quem, em Portugal, se desconhecia paradeiro.
Comecei por fazer referência aos combates entre MPLA e FNLA, no Caxito, arredores da capital angolana. «Guerra forte!...», escrevia eu, a minha mãe. E notava-lhe que «então para o sul, tem sido do piorio». Mas também acrescentava, para a descansar, que «por incrível que lhe pareça, até já nem vou ao quartel desde 2ª. feira, o que quer dizer que a guerra não tem sido com o meu batalhão».
Hoje mesmo, reli-lhe esta carta: «Mentias-me com todos os dentes...», reagiu ela, do alto dos seus 89 anos e 8 meses. Mas eu não mentia, não!
Aqui deixo breve sumário da epístola, no que diz respeito a conterrâneos que eu procurava, numa Angola em guerra:
«Estranhando o silêncio da Cecília e desconhecendo o que é feito do Mário e do Clemente - houve macas fortes na Gabela... - e como não há ligação de Luanda para o sul, fui ontem à Emissora Oficial de Angola e pedi para eles lerem um apelo para a Gabela e Nova Lisboa, utilizando um programa que especialmente se realiza para o efeito.
Ainda ontem ouvi eu próprio esses apelos, duas vezes, uma às duas da tarde e outra às nove da noite. O apelo é mais ou menos a dizer que, preocupado com a falta de notícias deles, que agradeço entrem contacto comigo, pelo telefone 210 de Viana ou, então, para a Emissora Oficial. Esperando o milagre de eles ouvirem o apelo, entre as centenas que a rádio transmite todos os dias, estou sempre a ouvir as horas das mensagens, aguardando qualquer coisa. Das duas vezes que ouvi ontem, não veio nada (...). E vocês aí, sabem alguma coisa deles?
Hoje vou ver se consigo dar com a casa da irmã da mulher do Clemente, aqui em Luanda, e depois digo alguma coisa».
A epístola desse já distante 21 de Agosto de 1975 dava ainda conta dos meus contactos pessoais com vários conterrâneos, em Luanda: os irmãos Resende, o casal Mário e Benedita (ela ia partir, de avião, a 30 de Agosto, e ele ficava, por causa das bagagens); da Cândida e do Ananias, do Zé Barrumas e outros. E rematava com um PS: «O Clemente, mulher e filha seguiram para Portugal na 2ª. feira, de avião, disseram-me em casa do cunhado». Soubera isto na visita a casa deles. 
Era assim que, há 35 anos, um "cavaleiro do norte" se preocupava com civis, em vésperas da sua partida de Luanda para Lisboa. De todos estes amigos, e outros que por Angola faziam pela vida, alguns já faleceram: O Zé Bernardino Resende, o Zé Barrumas e a mulher, o Clemente, o Rafael (marido da Cecília) e Isolina, mãe de Mário e Cecília, ao tempo viúva de Arménio, meu padrinho de baptismo e que, já então, falecera na Gabela - vítima de acidente de viação.
- VIANA. O telefone nº. 210 era o da casa de Manuel Cruz, de Águeda, onde (em Viana) estava eu, o Neto e o Monteiro. Se viesse alguma chamada, seria avisado por uma amiga da estação dos Correios.
- CARTA. Normalmente, eu escrevia a minha mãe cartas (e não aerogramas) de quatro cinco ou cinco folhas, duas por semana, no mínimo e sem poupar pormenores. São, hoje, preciosos auxiliares para estas narrativas do blogue. As citações que faço desta carta de 21 de Agosto de 1975 são feitas ipsis verbis.

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