António Casal Fonseca com os dois irmãos do Talabanza (Quitexe)
ANTÓNIO CASAL FONSECA
Texto
Algumas vezes, passados que são 38 anos, os dois miúdos da foto ainda percorrem os labirintos da minha memória. Moravam na sanzala Talabanza, à entrada para o Quitexe, por onde eu dava os meus passeios matinais de domingo, quase sempre de máquina fotográfica em punho.
Não raras vezes, apareciam junto à vivenda do pessoal das transmissões e ali permaneciam sentados nos degraus da entrada principal, abrigados do sol e em alegre cavaqueira num qualquer dialecto misturado com a língua de Camões. O mais pequeno, o Domingos, por ser mais decidido, era quem se encarregava de perguntar por mim ao Nunes, um dos poucos dotados de paciência para os ouvir e lhe dirigir algumas palavras amáveis, talvez pelo facto de já ser pai.
À minha chegada torcia-se de vergonha e quase de cara voltada lá me ia dizendo ao que ia: «Era as lata senhô, era as lata!....».
Eu bem lhe perguntava para que eram “as lata”, mas quanto mais eu apertava com ele mais escondia os olhos, ao mesmo tempo que fazia riscos na terra com o dedo grande do pé! Curiosamente, o mais velho não falava com a tropa! Nunca lhe consegui arrancar uma palavra nem um sorriso, nem mesmo quando o “provoquei” ao andar com o irmão às cavalitas, em dia de limpeza e revista ao pessoal. Andou às cavalitas e logo de seguida foi direitinho ao chuveiro, de onde saiu “como novo” e de nariz sem o ranho que tanto o caracterizava!
Mas eles não queriam saber de cavalitas, nem de banhos e muito menos de conversa! O que eles queriam mesmo era latas de rojões que eu guardava num saco, a que se juntava, algumas vezes, uma ou outra lata de atum e um pacote de leite achocolatado que eu costumava ter ali para o que desse e viesse, no frigorífico – o tanque de água do quintal! Como nunca gostei de rojões, e não era o único, fazia celeiro na certeza de que mais dia menos dia se comeriam. O que sempre aconteceu!
Mas a manhã viria a terminar com algum azedume entre mim e o Mário, por causa do pequeno Domingos, cuja presença ele não tolerava!
«Não quero o miúdo por perto pá…, o gajo é ranhoso»!, gritava e esbracejava, vermelho de raiva, naquele corpo grande e desajeitado!
“Ranhoso?!...,mas tu és tão ranhoso quanto ele!..., a única diferença está em quem tem, ou não tem, o lenço”!...,respondi ao meu bom amigo, provocando de propósito e enfurecendo-o até à medula! Não entendeu, ali, a minha resposta e, talvez também por isso, como habitualmente rangeu os dentes e levou a porta do quarto à frente. Mas tinha um coração de manteiga, e alguma horas depois já estava como se nada fosse! E não foi!
O miúdo, indiferente ao incidente “doméstico”, lá bebeu o achocolatado a seguir ao duche e foi embora com o irmão, ambos felizes da vida com as latas guardadas dentro da camisa de muitos dias. Talvez de todos os dias! Guardadas por precaução, porque os mais corpulentos não tinham pejo em roubar-lhas, até usando a violência se necessário fosse. Era assim a vida dos meninos mais desprotegidos do Quitexe, sempre comandados pelo instinto de sobrevivência!
1 comentário:
Ola malta para quando o almoço?
João Monteiro
Enviar um comentário