terça-feira, 23 de junho de 2009

O soldado que se deixou morder por um cão do Quitexe...

Rua principal do Quitexe (rua de Cima) em 2009, do
lado de Carmona, e em 1972 (em baixo
)







CRÓNICA de
A. CASAL FONSECA
Marrazes (Leiria)
Foto da época








Se havia coisa que me causava apreensão nas ruas do Quitexe, era ver cães vadios a deambular. Alguns mais pareciam radiografias e, aí, passava da apreensão à revolta! Há pessoas que não gostam de cães mas eu sou completamente doido por eles! Admito algum exagero, mas não consigo evitar este apego e o meu que o “diga”!
E cá vou «transportar-me» para a rua de cima, ali mesmo à frente do bar “A Geladinha do Quitexe”, de Dona Carlota e sr. Vitorino. Para trás, tinha deixado o Topete, onde me tinha saciado com umas cervejas na companhia do Álvarito que, melhor que eu, dava uns pontapés na bola. Eu, futebolista falhado no Leiria e Marrazes e ele excelente avançado no Marinhense.
Naquele dia, ele estava radiante e tinha razões de sobra. Afinal, o Quitexe nem era aquele fim de mundo de que tanto se falava! Ali, naquela pequena vila, alguém o foi contratar para jogar no Recreativo de Uíje! Finalmente, iria pôr à prova todos os seus dotes de exímio avançado/goleador!
Aproveito o cumprimento do Sr. Guedes, vizinho do Topete, que avistando três cães encetou conversa sobre eles. Queixava-se do perigo que representavam e, sorrindo, lá me foi avisando que não respeitavam fardas para satisfazerem os seus instintos. Finda a conversa, não folguei mais de um minuto, até sentir os dentes bem afiados num membro inferior, impacto que quase me tombou! Fiquei aterrorizado, não tanto pela dor mas pelo sangue que, em segundos, já pintava o alcatrão de vermelho! Aquilo não era normal e ainda por cima protegido com o camuflado!
Ainda retenho a imagem de uma miúdita, filha de um comerciante, penso que seria Barata, fugir apavorada para a loja e aos gritos. Ainda bem que o amigo Álvarito já não estava comigo, porque só ia complicar! Tinha aqueles problemas com o sangue…”adormecia” e dizia que era de família! Um indivíduo dirigiu-se a mim e, com voz segura, disse-me: «Puxe depressa as calças e tanto me faz se é para cima ou para baixo!...».
Olá… então, mas como é que é…?! Mas quem é este gajo com este paleio?! Vendo que eu não estaria muito por aqueles ajustes, cerrou os punhos e gritou: «Porr…está a olhar para onde? Está com medo de quê, sou o enfermeiro Simões do Quitexe …!».
Não hesitei e num ápice fiquei em parcos preparos. Ele tinha acabado de prestar os seus préstimos a uma senhora doente e foi o chamado anjo caído das alturas. Mais tarde, vim a saber da sua polivalência e dos serviços requisitados como parteiro, vindo a destacar-se profissionalmente em Viseu, no pós-75.
Agora, apesar das dores, eu já não estava tão preocupado com o ferimento que até passara para segundo plano! O que me preocupava, isso sim e muito, era a falta de indumentária! Bonito serviço, meia dúzia de negros a apontarem-me o dedo com risos trocistas e eu, ali imobilizado, a soltar de vez em quando um esgar de dor ao ritmo dos curativos!
O cão tinha sido certeiro, ao apontar para uma veia importante, o que causou toda aquela angústia!
Passados 37 anos, ainda guardo “orgulhosamente” a sua imagem de marca! Como se não bastasse o sofrimento, ainda fui chamado ao capitão (já esperava…), para justificar a minha presença naquele local, àquela hora. Mas como é que a notícia lhe chegara ao ouvido? Eu sei muito bem quem lha transmitiu mas vou guardar segredo, não é melhor amigo …?! Ainda bem que concordas comigo!
Claro que a humilhação a que me sujeitei na rua foi omitida, não soubesse eu bem o que teria de aguentar por dois anos... no mínimo! Como muita gente civil branca soube do ataque canino e me questionavam sobre a gravidade, passei a andar de calções para que todos matassem a curiosidade. Pensando bem, não houve moçoila que, ao passear aos fins-de-semana na rua de cima, não pusesse os olhos na minha figura, segredando e sorrindo! Como me sentia importante! Seriam movidas apenas pela tal curiosidade? Talvez, mas nos meus 22 anos confesso ter sentido um certo gozo com tantos olhares! Houve quem, por gracejo, contasse as marcas para ver bem com quantos dentes tinha sido acariciado! Porque alguém se lembrou de propagar que eu teria protegido a ainda criança do ataque do cão, notei passar a ser o centro das atenções e estar a receber a simpatia de alguns civis, agradecidos pelo meu acto de “bravura”!
À minha passagem, ouvia dizer meio entre-dentes mas com sentido de admiração: «Olhe, Dona Esmeralda, foi aquele soldado … ali aquele…, de calções». Afinal, nós podemos ser heróis em qualquer parte do mundo! Imagine-se, até na rua da pacata e bonita Vila do Quitexe!
A. CASAL FONSECA
Marrazes (Leiria)

3 comentários:

Daniel varela disse...

Boas Sr A.Fonseca: Foi com alegria que eu Daniel, Sónia(nascida em Portugal)e a minha mãe Carlota lemos a sua narrativa onde menciona o nome do meu falecido pai Vitorino e a minha mãe Carlota, juntamente com a sua peripécia junto a "Geladinha". Com pena minha quase não me recordo da aldeia onde nasci, mas ainda dá para lembrar algumas imagens que ficaram da minha parca infancia, a igreja onde brinquei, o jardim, e a escola. pouco mais me lembro. No entanto fico feliz na mesma em saber que nesse cantinho houve muito o que falar e contar até aos dias de hoje.
Um abraço e continue a enviar novidades.
Danielvar@gmail.com

Viegas (ex-furriel miliciano) disse...

Caro Daniel Varela:

Este espaço foi criado justamente para que participe quem, de alguma maneira, viveu o Quitexe.
Colabore, se quiser.
Também conheci seus pais, embora, francamente, não me recorde dos rostos. Os militares do meu tempo eram clientes da casa. E assíduos!

Anónimo disse...

Caro sr. Viegas:

O mérito do blog é todo seu e acho formidável como o consegue manter actualizado, parecendo que de alguma maneira suas histórias também as vivemos com vocês, peço-lhe que continue a falar do Quitexe...
A. Silva