Rua do Quitexe, ligando a de Cima (estrada Luanda-Carmona) à de baixo (avenida).
Ao fundo, vê-se o edifício onde funcionava o Comando da CCS do BCAV 8423
Voltemos ao Quitexe e ao dia-a-dia de muitos jovens que, no fulgor da juventude, eram arrimados para cenários de guerra. Dias maiores e melhores eram sempre os que correspondiam à chegada de companheiros deslocados em outras companhias - Zalala, Santa Isabel e Aldeia Viçosa, ou quaisquer outros destacamentos do BCAV. Ou nós mesmos por lá passávamos.
Eram momentos importantes,nomeadamente pela troca de confortos e experiências, que eram colhidas de sementeiras emocionais e psicológicas diferentes, é bem verdade, mas que nos emprestavam um maior sentido de serviço e coragem. Se há tempo em que a solidariedade existe, não tenhamos dúvidas, é na tropa. E nomeadamente nos tempos de guerra.
Um dia importante, de data de Novembro de 1974 que não consigo recordar, foi o de uma de uma saída ao Destacamento de Luísa Maria (foto de cima), com passagem, no regresso e inesperada, por uma sanzala, na qual a autoridade do soba tinha sido posta em causa, com agressões morais e físicas pelo meio. Foram momentos menos fáceis. Havia a suspeita (depois confirmada) de por lá estaram infiltrados «inimigos» e nestes momentos de virtual confronto, em que a fúria, o medo e a dor não sossegam a alma, tudo pode acontecer.
A informação de que dispunhamos apontava para acções retaliatórias contra antigos e actuais GE´s e sobas. E também sabíamos que «desconhecidos» tinham abatido por esses dias um antigo GE, para os lados de Vista Alegre.
Os novos cenários políticos resultantes do 25 de Abril tinham criado uma janela de abertura e contactos que apontavam para a paz, mas... nunca fiando. Era esse o perigo maior! A área dos chamados «quartéis» de Camabatela e Quiculungo seriam as mais sensíveis e era para essas bandas que inesperadamente iríamos ter de passar, no regresso de Luísa Maria ao Quitexe - numa longa volta por picadas de pó que eram novas nos nossos destinos. E virtualmente traiçoeiras!
Lá chegados, achámos o velho soba da sanzala (não me lembro do nome) agredido e ensaguentado à porta da sua palhota coberta de capim seco, com uma velha mauser sem balas pousada ao lado, rodeado de carpideiras em cânticos plangentes. Foi levado para o Quitexe, onde foi socorrido no hospital e «entregue» à administração civil. Pelo caminho, houve tempo para uns tiros a uma pacaça que galgava na picada. Recordo, como se fosse hoje, o sorriso do velho soba, de boca rasgada e larga, sem dentes, a olhar o entusiasmo dos soldados que a todo o tiro tentavam abater o animal - sem conseguirem, a coluna, de resto, nunca parou... - mantendo-se ele firme e sem um ai, ainda que roído de dores, sentado no unimog e com o sangue a secar-lhe nos grossos lábios de rosto desbarbado.
O sorriso era aquele fechar de lábios de quem sofria como, aliás, bem se notava nos breves esgares que não nos podia ocultar. Mas sempre se afirmando fiel à bandeira portuguesa, como fez questão de recordar a todo o passo dessa viagem de regresso ao Quitexe.
Uns dias depois, no jardim da vila, vinha eu a sair da estação dos Correios quando o vi, de longe, a parar ao toque do arrear da bandeira, na rua de baixo - em sentido, firme, em pose garbosa. Arrepiei-me!
- SOBA. Autoridade civil tradicional em Angola.
- PACAÇA. Animal semi-selvagem, idêntico às vacas europeias.
- MAUSER.Arma de origem alemã, que foi usada pelo exército português. Mais usual, no nosso tempo, era a G3.
Sem comentários:
Enviar um comentário