A Igreja da Mãe de Deus do Quitexe, nos anos 70 do Século XX
ANTONIO CASAL
Texto
O dia 23 de Julho de 1972, começou sereno e com a habitual Missa de Domingo. Não sei muito bem o que me levava à celebração, mas que me sentia bem, lá isso sentia!
Não primei pela assiduidade, mas sempre que marquei presença, fi-lo de corpo e alma. "Ouvir Missa...", fazia-me regressar um pouco à aldeia, à família e aos amigos. E porque do outro lado alguém estava doente, no caso a minha mãe, devo confessar que aquela hora não era isenta de algum sofrimento (se calhar muito...)!
Preces de cá e de lá e que certamente se cruzavam, sabe lá Deus onde!...A meu lado assistia à Missa o furriel Teixeira, muito compenetrado, sempre com a mão nos olhos! Traíu-o um pequeno soluço, de imediato disfarçado com algumas tossidelas, mas que deixava transparecer o seu estado de alma! Olhou para mim um pouco atrapalhado e, com o dedo nos lábios, fez um o sinal para que eu não abrisse a boca.
Finda a Missa, e para que se sentisse mais à vontade, afastei-me dele. Parecia-me demasiado perturbado! Não conseguindo lidar sozinho com a pressão, lá me procurou para aliviar um pouco as mágoas. Na varanda da vivenda, em cavaqueira mais franca que amena, abriu-se e contou o que o assaltava! Ao início, a muito custo, até que se foi "soltando"!
Já com olhos vermelhos e voz que pouco a pouco se embargava, falava da família e das preocupações que lhe tiravam a alegria e o sono. Chorou "baba e ranho" e sem nunca deixar de me olhar nos olhos. Nas suas palavras, não havia quaisquer sinais de azedume ou mal-estar! Gaita, por aquela não esperava eu!... Confiou-me partes da vida familiar que me deixaram um pouco atordoado e até incomodado!
«Nunca contes estas coisas a ninguém...é só o que te peço!...», dizia quase em tom de súplica, afim de salvaguardar a sua vida privada!
Depois de um monólogo de quase uma hora, lá consegui iniciar um diálogo que apaziguasse um pouco aquela aflição. Foi até ás duas da mdrugada, hora a que fomos interrompidos por um colega, que queria descansar e se queixava de sono leve!
Depois daquela conversa, passei a entender atitudes que não me tinham passado despercebidas nos primeiros três meses de comissão! Eu já tinha jurado a mim mesmo que tinha visto o furriel chorar, pelo menos uma vez! Não me tinha enganado!
Nunca quebrarei o sigilo que me pediu, mas adianto o que posso: o furriel Teixeira era oriundo de família extremamente pobre e que vivia da pequena agricultura, em terras de Vilarandelo! Foi para o seminário, mas viu-se forçado a abandonar para financeiramente ajudar a família - sendo o mais velho de oito irmãos, dele muito dependia o agregado familiar.
Fazia questão de que chegasse à família quase tudo o que ganhava, ficando apenas com uns trocos para umas cervejas, de vez em quando. Na consoada de 1972, confessou-me mal ter tocado no bacalhau - não conseguia! Não tinha muita certeza se havia fartura, ou falta, na mesa dos irmãos, o que o deixava em grande ansiedade e tristeza! Mas ele era assim mesmo! Pequenino e com um coração enorme! Não querendo partilhar as suas agruras com mais ninguém, muitas vezes sofreu pelo seu modo de estar.
Dizia não se poder abrir porque tinha chegado à conclusão que andava ali muito "filho da mãe"! Dizia-o com o ar mais ingénuo do mundo, como se estivesse a contar uma grande novidade!...
A escassos meses de terminar a comissão, fez-me uma pergunta muito directa e que me deixou de boca aberta: «Ó Casal, estou a pensar meter o "chico"!...».
Com ar incrédulo, olhei-o e perguntei: «Meter o quê?!... O chico?!...».
respondeu-me com voz segura: «Apesar de não gostar nada disto, tenho mesa garantida e posso ajudar melhor os meus irmãos!».
Engoli em seco e não respondi! Optou por não o fazer e diz que fez bem! Valha isso! Ainda hoje penso nas muitas coisas que preocupavam cada um de nós, sem que soubéssemos uns dos outros! E tanto tempo partilhado!...
- ANTÓNIO CASAL. Militar do BCAC. 3879, no Quitexe entre 1972 e 1973.
1 comentário:
Um grande abraco para ti Casal,sou o Branco de Viana.
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