domingo, 22 de novembro de 2009

O Papélino que era engraxador do Quitexe...

Furriéis Farinhas, Neto e Viegas, com Papelino,
no Quitexe, em 1974

Hoje, numa breve passagem pelos papéis da “guerra”, dei de caras com uma foto, julgada perdida, tirada numa Sanzala do Quitexe. E lá estava eu, com dois miúdos a ladearem-me, meio envergonhados e parecendo receosos da objectiva!
Eram “clientes” diários do refeitório dos Praças e colegas do Papelino, de quem já aqui se falou em tempos, numa crónica que eu gostaria de reforçar! E digo clientes, não porque se sentassem à mesa, mas porque assistiam, ao longe, a praticamente todos os almoços, quase lhes caindo os olhos para o prato! Logo a seguir à Secretaria, lá estavam eles, cerca de uma vintena, quase pendurados no arame farpado, cada um com o seu saco de plástico! Os mais “finos” lá conseguiam um recipiente mais adequado, mas até isso era um pequeno luxo! Os encontrões permitiam aos mais possantes ganhar os lugares da frente, ficando assim em melhor posição para receber a comida por que tanto ansiavam! Não foram poucas as vezes em que fomos forçados a intervir, pondo um pouco de ordem na miudagem! Os mais pequenos, e porque a vida bem cedo lhes ensinara, por estratégia esperavam mais para o fim. Sabiam que era a única maneira de não serem espoliados da comida, pelos mais velhos e corpulentos!
Foi assim que eu conheci o Papélino, o tal miúdo a quem já foi feita referência, que tocava com uma mangueira e engraxava (?) o calçado ao pessoal. Franzino mas esperto, terá conseguido furar a barreira, o que, penso eu, terá causado a ira de alguns colegas!
A forma violenta com que estava a ser agredido por dois matulões, levou-me a interferir de forma enérgica! Nunca tinha assistido a uma cena de pancada protagonizada por crianças e não sabia muito bem por onde e como começar! Como nos dita o instinto, há que proteger o mais fraco!
Cara maltratada, coberto de pó, ar impotente e com a caixa de graxa na mão, foi o que registei na memória! Ah, e posteriormente outra: A olhar-me pelo canto do olho com ar desconfiado e a caminhar a meu lado com a caixa no ombro! Curiosamente, dele não saiu um único queixume, o que me admirou no momento. Com o passar dos dias, viria a perceber que tudo aquilo era rotineiro e ele mesmo já se habituara. Talvez os outros não lhe perdoassem o facto de ser mais astuto!
Só parámos no Topete onde, muito aflito a olhar para o proprietário e sentado apenas na ponta da cadeira, foi mastigando o “prego” empurrado por uma mission de maçã - servido, diga-se, de muito má vontade e com absurdas reticências, depressa debeladas e esclarecidas! Havia de voltar mais vezes, apesar de a minha atitude ser, por “pensadores” de dedo no sobrolho, considerada inconveniente e um tanto despropositada!
O Capitão, a quem o “lixívias” tinha enchido os ouvidos, não perdeu tempo e à primeira oportunidade quis colocar-me na ordem! Depois de algumas «recomendações» em tom ameaçador, lá me foi dizendo que a minha acção, embora inapropriada, até nem era criminosa… e longe disso! O problema, dizia ele já em Português claro, residia no facto de o miúdo se sentar à minha mesa!... Ficava mal, pronto!...
Perante tal pensamento e afim de evitar qualquer mal-estar, tomei uma atitude radical: A partir daquele dia, deixei de convidar o Papélino para se sentar à minha mesa! E passei eu a ter o prazer de sentar-me à dele, não sem antes pedir licença, como mandam as regras!
A. CASAL

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