quarta-feira, 26 de agosto de 2009

As rajadas obtusas do Beira Baixa na picada do Fazenda do Liberato...

Fazenda do Liberato, ao lado do Quitexe (no mapa)
PESTANA BASTOS*

Batida no Sanda, por três dias. Pedi para ir. Já tinha ido a várias e nunca tinha havido tiros. Cheguei a convencer-me que era de propósito: se eu ia, não havia; se não ia, eles choviam.
Depois de muita mata e muito capim, atravessámos o Calambinga por cima de um tronco encalhado entre pedras, num sítio em que o rio formava rápidos, apertado entre ravinas. Sítio idílico para um picnic. Então, para uma emboscada do IN, nem de propósito se arranjava melhor. Lá atravessei o tronco, com o credo na boca. Mas nada de desagradável aconteceu: nem um banho forçado.
Ao cair da noite, chegámos a uma mata perto do sítio onde calculávamos que estivesse o acampamento «turra», o que se confirmou no dia seguinte. No máximo silêncio, aninhámo-nos para passar a noite. Silêncio nosso, entenda-se. A mata deu o habitual «concerto» de gritos, pios e outros ruídos mais ou menos sinistros, com que os vários passarocos da fauna local animam as noites do soldado operacional. Dormi como um justo, que o aspecto musical do meio ambiente já me era conhecido de anteriores experiências.
Aos primeiros alvores da madrugada, lá fomos nós em busca da sanzala «turra«. Encontrámo-la, grande, bem limpa e ordenada e, não longe dali, um quartel, com paliçada e porta de armas. Tudo com o aspecto de ter sido abandonado há minutos. Ainda vimos um cãozito e lume mal apagado. Dadas as conhecidas qualidades combustíveis do capim seco, reduzimos tudo a cinzas e cacos. E retirámos, na convicção plausível de que o pessoal «turra» devia andar perto. Quase lhes sentíamos ainda o hálito, flutuando na frescura da manhã.
Tomámos o rumo do Liberato e fomos andando. Cheguei a convencer-me de que nada aconteceria. Porém, quando vínhamos pelo capim, em bicha-de-pirilau, ao pessarmos em frente de um promontório de mata que avançava como um dedo apontado na nossa direcção, rebentou nutrida fuzilaria. Íamos três grupos de combate, que ainda davam considerável extensão.
Eu ia aproximadamente na união dos dois terços iniciais com o terço. E os tiros só começaram quando eu ia a passar na direcção do promotório. Ninguém me tira da convicção que a emboscada foi feita a mim, aos meus bigodes "à princípio de século", ao meu ar mais velho de «pai-da-malta». Até porque as ouvi assobiar por perto.
A reacção foi imediata. À minha frente, um soldado, João dos Santos Antunes, o Beira Baixa, despejava repetidas rajadas de metralhadora, segundo um ângulo que se me afigurava perigosamente obtuso. Claro que tive medo. O medo é como as cartas de amor: "quem as não tem?".
O inimigo retirou para melhores paragens, com um problema habitacional a resolver. Eu mantive os bigodes. Mas experimentei uma forte senção de desconforto, que só aumentou nas primeiras horas e dias.
* PESTANA BASTOS
Médico do BART. 786 / Quitexe 1965/67

3 comentários:

CAVALEIRO disse...

Quero dar os parabéns ao (furriel) Viegas pela iniciativa de criar este magnífico blogue, onde todo temos oportunidade de relembrar os temos em que estivemos em Angola, num dos melhores tempos da n/ juventude. Lembro-me bem do furriel Viegas, ao ver a sua fotografia desse tempo, assim como do Neto e do alferes Almeida, cujo artigo sobre o alferes Garcia eu já comentei.

OLIVEIRA disse...

Também dou os meus parabéms ao furruel Viegas este blog é estupendo e faz lembrar momentos bonitos da n/ vida. Não perca a guita...

Octávio Botelho disse...

Caro Camarada:
O "post" do Dr.Pestana Bastos, desencadeou em mim um vendaval de saudade. O facto é que tomei parte na Operação ao Vale da Sanda, descrita pelo Dr.P.Bastos, no já distante ano de 65 do século findo.Era eu Fur.de Artª.(QP), a fazer a primeira comissão das três que fiz em Angola. Fazia parte do
3º.GC/CArt785/BArt786/RAP-2. Senti saudades não da situação então vivida por todos nós, uma situação de guerra dura, num clima nada agradável e num isolamento de tal ordem!...Senti saudades da época em que era mais jovem, tinha saúde para dar e vender e, apesar das dificuldades vividas, mesmo assim tinha também bastante alegria de
viver. Saudades também do ambiente de solidariedade e camaradagem que tal situação nos impunha e apesar de tudo era tão benéfica e necessária para se ultrapassarem as dificuldades surgidas. Sim!...Lembro-me também de que o Dr.Bastos, pela sua aparência de "mais velho", agravada pela presença do seu "farfalhudo" bigode, foi tomado como alvo a abater pelos atiradores da emboscada que nos foi feita, supondo eles que se deveria tratar do "Maior" da operação!...Enfim!...Decorridos que são 45 anos sobre a ocorrência, ela se mantém presente como se tivesse decorrido há dois ou três anos.
Não quero alongar-me mais e neste momento quero dar os parabéns ao Administrador deste Blogue pelo trabalho efectuado e que possibilita o reviver destes acontecimentos marcantes na vida dos ex-combatentes da Guerra Colonial.
As maias cordiais saudações aos colaboradores e vistantes deste Blogue e também ao DR.Pestana Bastos, médico que pertenceu à minha Companhia e muitas vezes nos acompnhou nas andanças da guerra.
Para todos um abraço do Camarada,
Octávio Botelho, actualmente SAj.Artª.Ref.