terça-feira, 4 de outubro de 2011

1 024 - A retórica do soldado Zeca, que era um ás nas damas e no bilhar...

António Casal à porta do Café Camabatela


ANTÓNIO CASAL DA FONSECA
Texto

O Café Camabatela era dos irmãos Santiago e local de encontro de muitos militares, principalmente depois do almoço. Aqui se comia, bebia e até jogava bilhar. Seria, penso, o único bar que tinha tal mesa!

Mas também era palco de jogos de “damas” e até de grandes torneios com prémios apetecíveis, disputados por civis e militares.
E assim voltou a acontecer, em Agosto de 72, com a “apresentação” dos jogadores, noite adiantada, num ambiente que se queria lúdico. Mas a coisa não iria ser bem assim, com um elemento civil a querer impor a sua lei e a trilhar um caminho que indignou todos os presentes: «Se este aqui participar, eu não participo!..., era o que mais me faltava… Nem pensem!».
Ora, o “este aqui” era um militar da CCS, o soldado Zeca! Pois, o problema é que ele era soldado, confessou-o - e não se sentava à mesa com soldados! O Zeca, homem sempre extremamente educado, não estava a acreditar no que ouviu! Quando percebeu que o civil não estava a brincar, ficou atónito! Grande de corpo e de alma, a sua indignação era bem visível! Serenamente, os seus olhos pararam na farda que envergava! Sentiu-se deslustrado e injuriado, e enfrentou o civil! Tememos o pior! Eu já “via” o civil agarrado pelos fundilhos, e as graves consequências que tal arrecadaria! Mas não, nada disso! Olhos nos olhos, até mesmo a escassos centímetros, o amigo Zeca passou-lhe uma retórica, forte e feia mas bem incisiva! Um discurso fluente e carregado de emoção, que nos surpreendeu! E orgulhou! Afinal, todos os militares estavam fardados!
O civil, que eu bem conhecia pela sua arrogância e tentativas de desrespeito pelos militares, principalmente pelos praças, viu fugir-lhe a coragem que pensava ter e refugiou o seu olhar na restante comunidade civil branca! Escutou um silêncio sepulcral e, de rabinho entre os membros inferiores, saiu pela porta pequena!
Era uma sexta-feira e já não houve torneio de damas. Passaria para o dia seguinte, pelas 22 horas, com os ânimos mais calmos e a concentração mental que o jogo exigia.

E aqui houve uma surpresa! O civil que no dia anterior causara o mau ambiente, foi dos primeiros a chegar à sala do torneio. Olhado de soslaio, cumprimentou todos os intervenientes, com excepção para o Zeca! Agora, com o apoio de um sargento do quadro, seu amigo de batota, que se inscrevera com a intenção de usar as divisas para correr com o Zeca, julgava-se dono da situação. Já não era a primeira vez que o graduado fomentava divisões entre militares e civis, pelo que, além de outras infracções graves, já tinha sido chamado à razão, pelo Comando!
Poupando eu os detalhes, que seriam muitos e nada dignificantes, o sargento e o comparsa civil acabaram literalmente expulsos da sala de jogo!
Já por volta da meia-noite iniciou-se o torneio e, sem qualquer surpresa, o “ouro” foi para o Zeca. A sua rapidez de raciocínio, que se estendia às cartas e ao dominó, impressionava a silenciosa assistência.
Ainda hoje dá cartas, que é como quem diz…damas, em grandes torneios na sua cidade natal. Apesar de fragilizado e em cadeira de rodas, ainda há dias me disse: «Mesmo sem as pernas que percorreram centenas de quilómetros de mata, continuo feliz!…, a minha vida está agora a recomeçar…ninguém me pára…tu conheces-me»!
Eu sei, Zeca… Se conheço! E também sei que, à boa moda do Quitexe, continuas a “limpar” os torneios!

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