domingo, 31 de maio de 2009

Quando soubemos que íamos ser Cavaleiros do Quitexe...

Entrada do Campo Militar do Grafanil, nos
arredores de Luanda, na estrada de Catete e antes da cidade de Viana

A vila do Quitexe com a capela em primeiro plano. Foto Major Pinheiro,
2º Cmdt BARTª 786, tirada em Março de 1967. Clique, para ampliar.

Fátima e José Bernardino Resende, com as duas filhas; Albano
Resende, eu e o capitão Branco Domingues em Luanda, em Abril de 1975.


O Grafanil nos recebeu, a 30 de Maio de 1974, e no Grafanil soubemos onde íamos «pousar» pela razão que nos levava a Angola: a CCS do BAV 8423 iria ficar no Quitexe? Quitexe? Eh pá!!!... Deu-me um arrepio e fui ao saco da TAP rever a literatura que levava e avidamente devorara, sentindo-me algo esmagado pela brutalidade das imagens de homens, mulheres e crianças assassinados, degolados na terra mártir do Quitexe, numa brutalidade imensa, reportada a 1961 - o início do chamado terrorismo! Fiquei a soprar e a morder os lábios!
Bom, não adiantava constranger-me!! Logo em Luanda perguntei tudo o que pude sobre o Quitexe e o melhor que ouvi foi o José Bernardino Resende dizer-me que «é lá para o norte, não é o melhor sítio...», mas descansando-me com um misericordioso «está em Carmona um primo da Fátima, que é capitão...».
A Fátima era a mulher e o primo o capitão Branco Domingues, que estava no Comando de Sector e eu só viria a conhecer em princípios de 1975. O Albano, sobre o Quitexe, disse-me coisa parecida.
Comentei o Quitexe e o que soubera dele com o (furriel) Neto, que reagiu muito descontraídamente: «Não vai ser nada, pá!!!...». E, na verdade, o que é que nos poderia meter medo, aos 22 anos, no apogeu da força física e magnificamente preparados com estávamos, no plano técnico-militar e psicológico?!
Concordámos em não divulgar nada do que soubéramos sobre o Quitexe, nem sequer comentar entre os nossos pares furriéis. Creio que só eu terei quebrado esse compromisso quando, num almoço no Pólo Norte, na baixa de Luanda, achei por bem (mal) intrigar um nosso companheiro furriel, cujo nome omito, por razões de constrangimento: «Se soubesses o buraco para onde vamos!...». E com este meu "roer de corda" matei a fanfarronice absurda e leviana desse nosso companheiro de batalhão.
E para terras do Quitexe fomos a 6 de Junho de 1974!
- J. BERNARDINO. José Bernardino Ferreira dos Santos Resende, conterrâneo de Ois da Ribeira que eu não conhecia, na altura. Já falecido. Irmão mais velho de Manuel e Albano F. S. Resende, todos ao tempo residentes em Luanda.
- ALBANO. Albano F. S. Resende, irmão de José Bernardino e de Manuel. Meu contemporâneo de escola, embora mais velho. A família morava a 50 metros de minha casa, em Ois da Ribeira. Reside nos arredores de Lisboa.
- FOTO: A foto (de família) é de Abril de 1975. A narrativa de hoje refere-se aos dias 2 ou 3 de Junho de 1974.

sábado, 30 de maio de 2009

O primeiro dia de Luanda...

Baía de Luanda, vista de duas perspectivas (net)

A descoberta de Angola foi feita com ansiedade e de amor à primeira vista! Os cheiros, o tudo que os nossos olhos viam de novo, tudo novo, parecia entrar-nos no coração como se fosse coisa familiar e de sempre.
Algo que me despertou imediata atenção foi o ar descontraído das gentes de Luanda, brancos fossem, ou negros, mulatos, de qualquer cor. Ou os ritmos novos que nos surpreendiam, para além de tudo o que já ouvíramos falar, tivessemos lido ou de qualquer modo soubéssemos da terra angolana.
A primeira noite, iniciada num restaurante da Mutamba, foi como que de magia: pela sensualidade das gentes que passavam diante dos nossos olhos, pela descontração e relacionamento entre homens e mulheres de tantas cores, pelas fronteiras inter-raciais que parecia não existirem. Pelo correr desembaraçado da crianças, brancas, negras ou de qualquer outra mistura de pele, que me pareciam todas iguais enquanto a noite crescia e as estrelas nasciam no céu meio avermelhado que caía para além da restinga, ou do Mússulo. Pode parecer que descobri tudo nessa noite, o que aqui conto! Não foi assim! Mas a minha primeira noite de Angola foi um total piscar de olho, um jogo de cumplicidades, um namoro logo assumido.
«Vive-se bem, por aqui...», disse-me o Albano Resende, nessa primeira noite luandina, ele que era meu vizinho de Ois da Ribeira e fazia pela vida em terras de Angola. Tinha razão!
Faz hoje 35 anos!
Fotos da net.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

A partida para Luanda, faz hoje 35 anos...

Entrada do Campo Militar do Grafanil (foto da net)

Avião dos TAM. Um dos três que fazia o transporte de militares

Largo da Mutamba. Aqui comi o primeiro jantar de Angola

Baía de Luanda à noite. Assim podia ser vista do avião dos TAM

Aeroporto de Luanda nos anos 70. Lá cheguei faz amanhã 35 anos

Lisboa, faz hoje 35 anos, anoiteceu com chuva torrencial. Idos de Santa Margarida, literalmente de armas e bagagens, lá íamos nós, homens do BCAV 8423 - a maioria a viajar pela primeira vez numa auto-estrada e a ir a Lisboa. E falo por mim!
A chuva caía a rodos mas não impediu o embarque, naquela algazarra típica da irreverência de jovens de 22 anos! Íamos para Angola! E por sinal bem divertidos, como se fôssemos em férias!
Levava em mãos um Mundo Desportivo (o jornal) e um livro de Horácio Caio (a capa, na foto), que justamente falava da guerra para que nos dirigíamos, sem eu sequer desconfiar que íamos parar ao Quitexe. Lá eu sabia o que era e onde era o Quitexe!
Gostei de ver Lisboa, a voar por cima dela, de noite e assim que o avião dos TAM levantou voo e ganhou rumo para Luanda. Depois daquele primeiro friozinho na barriga, deslumbrei-me com que via! A cidade era linda, vista do céu! Comemos e adormecemos.
A certa altura, alguém comentou que sobrevoávamos Bissau. Se era, vimos uma cidade calma, parecendo-me mal iluminada. E chegámos, já era manhã, à encalorada Luanda - que vimos do ar, sobrevoando a baía, que nos deslumbrou! A cidade paraceu-nos grande e não suspeitámos nela qualquer ar de guerra, o que nos deu grande tranquilidade e confiança!
E lá fomos parar ao Grafanil, o campo militar onde logo nos apareceu um sargento, querendo cambiar escudos por angolares. Lembro-me bem como, ainda no aeroporto, me senti sereno e logo soltei o blusão militar, largando suores fartos e bebendo a primeira cerveja angolana - uma Cuca. Eu levava angolares no bolso! Achei a Cuca demasiado leve. E bebi outra, e outra! Também havia a Nocal, a Eka, depois a N´Gola!
Nesse dia, era quinta-feira e já no Grafanil, ainda procurei o Custódio, meu vizinho de aqui a 100 metros, que por lá já jornadeava a sua comissão, como soldado sapador. Levava-lhe chouriços da mãe. Não o encontrei! Saí do Grafanil para ir a Luanda e localizei a namorada do Manuel Resende (o Pechincha!), outro vizinho daqui. E por ela cheguei ao Albano Resende, o irmão - que por lá fazia vida de civil. Fomos jantar ao largo da Mutamba, a restaurante que por essa altura se abria! E fui dormir a minha primeira noite de Angola. Ao Grafanil! Tinha começado a gostar de Angola! Há 35 anos, por esta hora em que escrevo este post, preparava-me para voar para Angola, deixando minha mãe viúva de pouco tempo! Agora, diverte-se ela, aos 88 anos, a ver fotografias do filho na net! De quando ele foi para a guerra!
Fotos retiradas da net.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

A segunda véspera da partida para Angola...

Cabos milicianos Viegas e Ferreira, no RC4, em
Santa Margarida, em Maio de 1974

Há 35 anos, faz hoje, foi a segunda véspera da nossa partida para Luanda, adiada de dois dias antes. O Neto pôs-se em casa, na Bicha-Moura (Águeda), enquanto o diabo esfregou o olho, pois sempre eram mais dois diazinhos de namoro com a Ni - que o coração andava em pulgas de paixão! Eu, optei por ficar em Santa Margarida, gozando das delícias do «edénico paraíso» que era o Regimento de Cavalaria nº. 4 - a nossa unidade mobilizadora.
Sem nada para fazer, para além do comer e dormir da circunstância, por lá enganei o tempo, em passeios e leituras, jogos de cartas e telejornais - que eram fartas das notícias do 25 de Abril, nos televisores a preto e branco do tempo. Estive na capela, fui ao cinema, dei umas idas ao destacamento onde estava o batalhão e por ali andei, em ciranda de horas a passar.
Companhia desses dois dias, entre muitos outros que por lá também ficaram, era o Zé Ferreira - o outro «ranger» de que falei há dias e que no RC4 fazia o seu IAO. Conversámos muito e coisa que ele estranhava era eu não ter aproveitado os dois dias do adiamento para ir para casa. Ele teria ido, assim como o Neto fôra. «Porquê, ó Viegas?...».
Não sei o que lhe respondi, não me lembro, mas devo ter sido muito convicto - pois a conversa mudou rápido. Já bem pela segunda noite dentro, começou a chegar a malta que aproveitara os dois dias e, por mim, confirmei a minha razão de não ter querido ir repetir despedidas! A malta vinha algo perturbada e mais nostálgica! A sentir mais a hora da viagem para a guerra.
«Amanhã a gente ainda se vê?», perguntou-me o Zé Ferreira.
«Não creio...», disse-lhe eu.
«A que horas vão para Lisboa?», retorquiu-me ele. Mas nem eu sabia bem.
A 29 de Maio de 1974, desfazia eu os nós da despedida que se aproximava, no fim de almoço e no bar dos cabos milicianos, íamos dentro de pouco tempo para o aeroporto de Lisboa, quando apareceu o Ferreira a correr - vindo do IAO. Olhou a sala, encontrou-nos - a mim e ao Neto e a outros... - e abraçou-se pendurado nos meus ombros.
Senti que nos queria dizer alguma coisa, mas não disse. Eu gracejei qualquer dito, não sei o quê..., reabracei-o e ele soltou-se em passo ligeiro, porta fora. Sempre sem uma palavra!
Ainda estou a vê-lo, depois a espreitar-nos da janela, até ir embora.
Ontem, telefonou-me por causa deste blogue e recordámos os dias de Santa Margarida. «Olha, faz além de amanhã 35 anos que andei pela primeira vez de avião. Quando fui para Angola...», disse-lhe eu.
"Estamos velhos, ó Viegas...», ouvi-lhe, dando-me troco.
Pois é, Zé... Estamos velhos! Estamos velhos e não esquecemos Angola!
- IAO. Instrução Altamente Operacional, último período de preparação militar, pós-mobilização. Por vezes, chamavam-lhe... manobras!

quarta-feira, 27 de maio de 2009

A companhia (não) apresentada ao alferes Ribeiro

O furriel Neto e o Alferes Ribeiro, numa noite do Quitexe

O alferes Ribeiro era o oficial miliciano sapador, de um pelotão que incluía os furriéis Mosteias, Cândido Pires e Farinhas. Engenheiro de formação, era a imagem da serenidade, da camaradagem, da tolerância e do saber-estar.
Um dia, estava ele, alferes Ribeiro, de serviço - de oficial de dia - e eu de sargento de dia, fazia-se a apresentação regulamentar da companhia, na parada das casernas e oficina-auto, atrás do edifício verde do comando. Eram três menos um quarto, o sol estava quase a pique e os soldados formavam o «U» com a malandrice indolente da hora, despreocupados e lentos, depois do café e do bagaço do almoço. Nada que não fosse habitual.
Era norma que, ultimada a formatura, se apresentasse a companhia ao oficial de dia. E naquela hora estaria a caminho o alferes Ribeiro, vindo da messe de oficiais para o cerimonial, quando irrompeu na parada o capitão Oliveira. Que eu não vi! Ele morava ali perto, fora do aquartelamento, com a mulher, a filha e o neto, e nem era habitual comparecer às duas formaturas diárias. Pois apareceu e, como não lhe fiz a apresentação regulamentar, berrou-me: «Ó nosso cabo, apresente lá essa m...».
Pfff...., o que disseste, capitão!!! Fiquei pasmado da surpresa de ele aparecer e do que disse! Gelaram-se-me as veias e mordi os lábios. De raiva!!! Cabo, eu?!!! «Essa m...?!!!...». Essa quê?!, perguntei-me por dentro. «Vossa Excelência meu comandante dá licença?!!! Apresenta-se o furriel miliciano tal, nº. tal, de Operações Especiais! M... pronta!!!», apresentei eu, depois dos passos do regulamento, à direita, em frente, palada de mão direita, hirta e seca, saudando o oficial! Ai o que eu disse!
Gerou-se um burburinho dos diabos, entre a centena e meia de praças que estavam na formatura. Meia volta, passo em frente, um, dois três: «Na formatura, não se fala, não se mexe, nem que passe um c... pela boca!...», gritei eu. Eu estava mesmo furioso para caraças!

Foram uns segundos de tensão. Farta tensão! Voltei-me: passo à direita, outro passo, e ia a reapresentar a Companhia mas o capitão já ia a caminhar a uns metros de mim, já de costas. A ir embora.
«Disse-me para lhe dizer, para ir ao gabinete dele...», disse-me o cabo Marques, o carpinteiro - o Manuel Augusto da Silva Marques, de Esmoriz.
Lá fui. De caminho, disse-me o alferes Ribeiro. «Podias ter evitado isso, aguenta-te!...».
Fui e nada aconteceu de especial, para além da invocação das NEP´s e muito comigo temeroso de alguma atitude disciplinar. Que não aconteceu!
Comentou-me o alferes Ribeiro, nessa noite, íamos aí pela uma da madrugada, estando eu seguro que estava solidário comigo: «Não percebeste o capitão, estou por ti mas podias ter criado um problema...».
O meu castigo foi ser nomeado fiscal de alimentação, à ordem. Acho que nisso fiz um papelão, razão de histórias para outras alturas!

terça-feira, 26 de maio de 2009

A morte da cobra cuspideira com o tiro certeiro do Alferes Garcia



ALFERES GARCIA, ao lado,
e a estrada de Quitexe para Carmona

A estrada para Carmona era o norte habitual da malta militar, que lá ia, à cidade, com fome das aventuras que a pacata e familiar vila do Quitexe não proporcionava.
Muitas vezes passámos nós por esta estrada, à cata de algum momento mais divertido, idos da vila onde estava instalado o comando do BCAV 8423. Éramos jovens de sangue quente, muito quente, e permanentemente desejosos dos pecados da carne! O que, verdadeiramente, nem era surpresa ou novidade para ninguém!
Havia, para ir à cidade, uma espécie de «rotação» entre os militares que, com o devido «passaporte», se faziam transportar nas viaturas que seis dias por semana asseguravam o Serviço Postal Militar (SPM). Saía-se pela manhã e vinha-se ao fim da tarde, depois de chegar o avião de Luanda - o avião que trazia o correio. O intervalo era para andar na galderice!
A minha «estreia» nesta estrada, porém, foi em viagem até uma tabanca muito próxima do Quitexe, onde o nosso pelotão foi «despejado» das berliets. Dali, iríamos palmilhar alguns bons pares de horas, num patrulhamento diurno que nos levou por lavras e matas. E pelos tais medos que sempre tínhamos!
Desse dia, absolvam-me da minha surpresa ao ver as mulheres a lavar roupa num ribeirito de pouca água, meias desnudas, de seios soltos e fartos, com os seus corpos cor de ébano a bombalearem-se descontraídamente - e que nós olhávamos com avidez desmesurada, ficando como que embriagados de cio e desejo. Outras, com as crianças às costas, pilando um milho que me parecia preto. Outras ainda, estranhamente, esfregando os dentes com um pau. Vim a saber que os estavam a lavar! Tudo isto era estranho para nós, há pouco chegados da Europa.
Desse dia, faço memória da pontaria «milagrosa» do Alferes Garcia, muito seguro na mira da G3 e no disparo que matou uma enorme cobra que se espreguiçava de um cafezeiro e, quem sabe?, iria cuspir veneno para cima de algum de nós.
Foi um tiro certeiro, e único, depois da ordem para o PELREC parar! E o enorme bicho, ferido de morte, contorceu-se, virou-se, pendurou-se, silvou... - um estranho silvo, como se assobiasse, um silvo que nos amedrontou... - e caiu, falecendo-se aos poucos! Um negro que a esventrou disse-nos mais tarde que era mesmo venenosa.
Nesse dia, algum de nós, quem sabe?, teve Deus pelo seu lado! E a sorte da pontaria e serenidade do Alferes Garcia, para evitar alguma tragédia!
Tinha a cobra mais de três metros e um peso e volume para ser pegada por três homens, já morta e bem morta! Lembro-me também de, nesse dia, um dos nossos soldados ter comentado a pontaria do alferes: «O tipo é bom!!....».
E era. E nem só na pontaria! Também na alma! Imensamente! Sempre!!!!

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Os Cavaleiros do Quitexe em vésperas do embarque para Angola, há 35 anos...

Cabos milicianos Viegas, Ferreira (na frente), Monteiro (tapado)
e Neto, no bar do RC4, em Santa Margarida, já mobilizados para Angola


Há precisamente 35 anos, estávamos nós a caminho da guerra, mobilizados para Angola. Tínhamos viagem marcada para 27 de Maio, depois adiada por dois dias, e o caminho aéreo era para Luanda, logo depois se veria!
O nosso destino, naquela idade e tempo, estava desde há muito anunciado: a tropa, a mobilização e um de vários destinos da nação que se anunciava multi-racial e pluri-continental. Para isso, tínhamos batido recruta em Santarém e especialidade em Lamego, no Centro de Instrução de Operações Especiais - os Ranger´s! Outros, noutros locais.
O 25 de Abril tinha sido há dias - um mês, para sermos exactos... - e murmurava-se que para a guerra não iria mais um soldado. Mas não foi assim.
A foto é de 27 ou 28 Maio de 1974, de há 35 anos, tirada no bar do Regimento de Cavalaria 4, em Santa Margarida. Aos três ranger´s do BCAV 8423, ali se juntava, já refeiçoando a nossa despedida, um outro ranger de Águeda - o Zé Ferreira, de Macinhata, que foi parar à Fazenda Maria Fernanda e depois a Benguela!
O nosso futuro imediato era o bojo de um 707 dos TAM, que nos voaria pelos céus de África fora, até Luanda. Neste dia, um de nós interrogou-se: «Como é que nunca ninguém se lembrou de atacar os aviões dos TAM?».
«Vai ser o vosso o primeiro!...», gracejou o Ferreira, a quem ainda hoje chamamos Pimenta.
«E se te fosses f...!!!», exclamou o Neto, furioso e brusco, esmagando a ponta do cigarro no cinzeiro cheio de piriscas.
O Monteiro, pálido na tez, não disse «ai Jesus» que se ouvisse! E eu sacudi o Pimenta, com um encontrão bem forte. «Vai mas é à m..., pá!...».
O resto da noite foi de muita conversa e cumplicidade, todos amigos, entre mais uns copos de tinto, sei lá se também umas cervejas. «Ó Viegas, quando lá chegares diz para cá como é aquilo...», sugeriu-me o Ferreira - que na altura já sabia ir para Angola! Era do turno seguinte ao nosso.
Assim fiz, mal lá cheguei, num aerograma cheio de «sangue» e lágrimas, vertidas da minha gana de o iludir, «vingando-me» da afronta suicida de Santa Margarida. E pior lhe fiz, já ele na Fazenda Maria Fernanda, quando lhe narrei dramas e tragédias que meteriam medo ao mais valente! Tudo «mentira» e quanto isso o incomodou! Acabei por fazer as «pazes» em Benguela, em Abril de 1975, quando ele para lá foi, fazendo a segunda parte da sua comissão num quartel separado da praia por... arame farpado. E eu por lá passei de férias, com o Cruz! Bons canhângulos por lá bebemos, com camarões que faziam crescer cerveja na boca!
- FERREIRA: José da Conceição Ferreira, o Pimenta. Furriel miliciano de operações especiais, natural de Macinhata do Vouga (Águeda). É chefe da estação de Correios de Oliveira de Azeméis.
- MONTEIRO, NETO E VIEGAS. Os três furriéis milicianos de operações especiais da CCS do BCAV 8423.
- TAM. Sigla de Transportes Aéreos Militares.

domingo, 24 de maio de 2009

O alferes miliciano Almeida dos reabastecimentos


A um qualquer dia de Julho de 1974, no machimbombo de Luanda, chegou à vila o mais esperado «cavaleiro» do Quitexe: um tal oficial de reabastecimentos, que escapara na malha da nossa mobilização e já ia no segundo mês de «balda» á tropa. Quem era ele, quem não era e como seria, o homem era um mistério!
Chegou, finalmente, seguramente farto da viagem no incómodo machimbombo que o trazia da cosmopolita Luanda, e coube-me ir esperá-lo à rua de cima. Eu estava de sargento de dia e incumbia-me encaminhá-lo para onde devia. Era, logo ficámos a saber, o alferes miliciano José Alberto Alegria Martins de Almeida.

A olhar-se para ele, com a nossa curiosidade afiadíssima, não nos escapava o ar de cultura, de sobriedade, de inteligência, que quase pareciam envergonhá-lo. A discrição, uma quase timidez!
Então de onde é que é, como é que é, blá-blá-blá..., logo ali ficámos a saber que tínhamos homem para latas e profundas conversas. Via-se que por aquela alma levedava cultura e sabedoria! E veríamos, depois, que também competência, eficácia, talento e humanismo. Tal e qual e sem nenhum sal a mais.
Coube-me depois, por sorte de serviço, fazer-lhe o debute de oficial de dia e passámos horas no blá-blá-blá das noites de África, que sempre se tornavam misteriosas. E mais cúmplices, ainda, pela curiosidade que ele quis lavrar-me, para saber como era o Quitexe e Angola. E eu, que já era um «veterano de guerra», querendo perceber bem que homem era o nosso! E saber o que se passava por Portugal, que ao tempo se enchia das labaredas revolucionárias incendiadas em Abril anterior!

Hoje, de Marrocos, recebi conversa electrónica do amigo (ex-alferes miliciano) Almeida, a falar do blogue e da vida. Vejamos:

Olá meu (não nosso ! …) Caro Furriel Viegas:
É de Marrakech que estou a responder.

Tenho lido, com agrado, a prosa (extensíssima …) dos Cavaleiros.
É evidente que tem tido um (compreensível ) pendor furrielístico, que pode (daqui a uns séculos, quando um historiador incipiente se for basear neste documento !) levar a crer que a nossa missão não teve nem oficiais (o que não seria assim tão grave …), nem soldados (o que já é preocupante…).
Tenho o dever de escrever algo, assim me assista o engenho e a luta contra o defeito de ter uma escrita que tarda muito a estar concluída (daí, o ela depois sair como um bom assado em forno de lenha...).
Tenho poucas fotos da nossa missão, mas tenho muitas memórias: é só por essas memórias que tenho de escrever o primeiro texto sobre o Alferes Garcia.
Como sabes, nunca participei em nenhum dos encontros e reencontros do pessoal do nosso BCAV . Mas concordo que este blogue pode constituir uma forma diferente e interessante de promover esse(s) reencontro(s).

E por aqui me fico, para não competir em extensão de texto com as prosas do meu amigo Celestino…
Um abraço do Zé Alberto (isto é, o discreto Oficial de Reab(astecimentos), que teve a sina de ficar “ad eternum” gerente da messe de oficiais).

- ALMEIDA: José Alberto Alegria Martins de Almeida, alferes miliciano de reabastecimento, natural de Oliveira de Azeméis e residente em Albufeira. Licenciado em economia e arquitectura, é, com o nome profissional de José Alberto Alegria, pioneiro em Portugal da renovação da geo-arquitectura e das modernas arquitecturas em terra (em taipa e adobes). É Cônsul no Algarve do Reino de Marrocos, professor universitário, conferencista, empresário. A foto é recente e do seu gabinete de Albufeira. Ver o currículo AQUI.
- MACHIMBOMBO. Assim se chamava a um autocarro, em Angola.

sábado, 23 de maio de 2009

A ponte do Dange (não) dinamitada

A ponte do Dange

A foto é recente e da ponte do Dange, aparentemente com um novo tabuleiro em construção. Ao lado, julgo poder identificar a antiga - por onde passámos em1974, por mais de uma vez. Será? Francamente, não consigo rev(t)er a imagem. Seja como fôr, passei na ponte do Dange duas noites e três dias, em data que também não consigo precisar! Fazia-se-lhe protecção, já que que era nevrálgica para o sistema rodoviário, entre Luanda a Carmona - a chamada Estrada do Café!
Indo sair uns dias e sabendo ser para missão estacionada, levei alguma literatura. Era 2ª. feira e, de Lisboa, tinha chegado o Expresso, o jornal - que, ao tempo, não se vendia ao "quilo", como agora, e eu lá recebia semanalmente.
Ao segundo turno, passei a ronda e, com a noite toda serena e de lua cheia, sem cheiro de IN, sem ruídos que nos fizessem nascer medos e connosco espreitando o luar que se punha por cima da mata, pus-me a matar o tempo em leitura do Expresso! De repente, um susto: o jornal noticiava que a ponte do Dange tinha sido dinamitada e que tinham morrido dois soldados portugueses! Senti um frémito de medo e angústia! Apanhou-se-me o peito! A ponte dinamitada?!
Estava armado, de G3 com bala na câmara e dilagrama, duas granadas defensivas e outras tantas ofensivas! Os soldados estavam de alerta, as redondezas armadilhadas e a ponte estava ali na nossa frente, intacta! Eu mesmo, não muito antes, a atravessara apeado, vindo de um posto de controlo, do outro lado do rio! Como era possível um jornal de Lisboa, de dois dias antes, dar notícia da destruição da ponte?!!!
«Será outro Dange...», considerou-me o Leal, que era soldado de poucas palavras e estava ali ao meu lado, em turno de descanso mas sempre de olho vivo, sentado sobre uma grade vazia de cerveja e, mesmo em descanso, espreitando os perigos que se suspeitavam da noite!
Olhámos, ambos ansiosos, para o bréu dos Dembos: a lua parecia-nos maior que nas outras noites, o luar abria avenidas no escuro e, de longe, ouviam-se piados e grunhidos de animais da selva! Mais do longe, pareciam ouvir-se batuques - que seriam de uma aldeia que sabíamos próxima!
A noite passou-se, sem mais leituras do jornal e com um milhão de cuidados, sem um momento de cerrar os olhos! Um momento sequer!
Quando o sol caiu nos nossos olhos, folgámos o sistema nervoso. Ali perto, vi passar uma velha, que cachimbava e se sentou numa pedra enorme, caída de algures. Lançava fumaças para o céu que se avermelhava, eram menos de sete horas da manhã.
«Bom dia, esfurrié...», disse-me ela, quando me aproximei.
Tínhamos-nos visto na véspera, na tal aldeia, e a velha que cachimbava levava uma cântara de madeira, cheio de fuba. Outra, com água! «Vais comê nos nossa aldeia?», perguntou-me ela, soltando uma espiral de fumo, lenta, em direcção ao céu.
Disse-lhe qualquer coisa e voltei à guarnição, onde já cheirava a leite escuro, para o mata-bicho, nas malgas de lata que o serviam com o pão duro de véspera. «Notícia de m....», pensei eu, sobre o que lera da dinamitação da ponte do Dange e apetecendo-me dar uns bons pontapés a quem tal notícia editou!. «P... que os p....!!!...».
Quando de lá voltámos ao Quitexe, olhei para a ponte numa espécie de adeus! E ela ali estava, intacta! Nunca mais por lá passei!

sexta-feira, 22 de maio de 2009

O inquieto Machado das nossas reinvindicações...

Os furriéis Machado, Neto e Pires (Bragança), civis de 1999

Hoje, telefonou-me o Machado!!! Estava eu no conforto de um café da tarde, numa instituição em que colaboro, quando o telemóvel me anunciou um desconhecido!!! E eu, que teimosamente não atendo desconhecidos, nem gosto de atender em horas de... serviço, afinal... atendi!! Era o Machado, o Machadinho, como gostávamos de lhe chamar!!!

Não havia questão onde tivesse de se botar palavra e opinião que não tivesse o impulso e a crescente e empolgada inquietude do Machado - a quem nunca faltava argumento para discutir o que quer que fosse! Se o grupo de furriéis tomava uma posição, lá estava o Machadinho na primeira frente. Ele e o Neto! E, se me dão licença, eu também dava uma perninha.

Uma vez, era latente o mau-estar entre os milicianos e os sargentos do quadro! Já se prolongava há semanas e nem nos podíamos ver! Por razões que não vem ao caso, mas que nada tinham a ver com indisciplina! Nada disso! E nós, mais refilões, nem entendiámos como é que dois ou três de nós (furriéis) acamaradavam com eles. Então, um dia, tomámos uma decisão radical. Note-se que não foi nenhum plenário, ou coisa que o valesse, foi tudo espontâneo: não mais nos sentaríamos à mesa com os tais fulanos. Tal e qual! E não sentámos, até que os cavalheiros se começaram a portar bem, do nosso ponto de vista! E deixaram de partilhar com (alguns) civis os géneros que nos pertenciam por direito!

Este movimento de furriéis, visto há distância de quase 35 anos, carreia alguma emoção e foi, seguramente, um bom exemplo de camaradagem e solidariedade. O Machado e o Neto bem merecem estar neste pódio de saudade e partilha que desfio nas palavras de hoje.

«Os nossos furriéis são furriéis do caral...», comentavam muitos praças, por esta e outras razões, sempre que nos viam envolvidos em reivindicações. Em reinvindicações, é certo, mas nunca em tresmalhamentos disciplinares!

Avé, Machadinho!!!! Gostei de te ouvir e de saber que é médico o filho dos teus amores!

quinta-feira, 21 de maio de 2009

O companheiro a quem passámos a chamar.. banana

Imagem da paisagem civil do Quitexe, aqui o Rio Loge!!! A foto é recente, retirada da net, e foi por estes lados que passei umas primeiras tardes de domingo da comissão em Angola!
Havia por aquelas bandas uma fazenda (não me recordo o nome, seria a Pumbaloge?!) por onde o PELREC passava frequentemente, em missões de patrulhamento e reconhecimento. Numa das primeiras, tivemos uma singular descoberta: bananas vermelhas.
Pode parecer estranho, e até caricato, terem-se espantado os jovens cavaleiros idos da metrópole europeia para as terras angolanas do norte cafeeiro, por haver bananas vermelhas! Mas, na verdade, nunca eu próprio vira tal cor nas bananais cascas! Foi um espanto daqueles!!
Levámos cachos e cachos delas, por gentileza do fazendeiro, e se espantados fomos nós, espanto criámos no Quitexe, na casa dos furriéis. Nenhum deles alguma vez tinha visto bananas vermelhas. E logo cachos e cachos delas!!! Um fartote!
Consolou-se delas um dos nossos companheiros (não vou dizer o nome!!!), à custa disso ganhando por tempos a alcunha de (fulano de tal)... Banana. Ainda por cima, era ele um homem de transmissões, especialidade por onde vagabundeava um rádio chamado... banana! Lembram-se, meninos?!
Foto DAQUI.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

A «menina» do Quitexe que foi ao cinema...

Clube Recreativo do Quitexe

O Clube Recreativo do Quitexe (foto) ficava na estrada do café e foi pouso de exibição de alguns filmes, por iniciativa do Gabinete de Acção Psicológica e para espectadores militares e civis. Já não tenho uma memória nítida da sala, mas é seguro que tinha balcão.
Uma noite, aí pelos idos de Dezembro de 2004, passou por lá fita que ninguém queria perder: «Eusébio». O filme do imortal futebolista português de Moçambique que, ao tempo, embora já algo distante do fulgor das suas enormes potencialidades, estava em apogeu de fama. Ainda hoje!!!
Andávamos nós por ali na nossa brincadeira de travestis quando o Machado, que era homem para muitos humores, não teve outra coisa que não desafiar-me: «Não és homem nem és nada se não fores assim ao cinema!...». E eu fui!
Aperaltei-me para a soirée, com os melhores encantos que pude, sem batons e máscaras, ou lábios pintados, mas muito feminino!!! E, valha a verdade, algo envergonhadote e até com medo de alguma atitude dos regulamentos militares. Mas lá avancei na noite para a sala de cinema, já de bilhete comprado!
O poiso era no balcão, e com o jeito feminino que Deus não me deu, lá me fui saracoteando, dando à anca e compondo os seios postiços que pendurava dos ombros.
«Mas quem é esta gaja?!», ouvia-se perguntar.
Nunca por ali se tinha posto o olho em tal mulheraço!...
Mostrava a fita os golos do «pantera negra» e gritava o povo civil e militar «Eusébio, Eusébio...», quando, ainda antes do intervalo, o vizinho do lado direito, um alferes miliciano acidentalmente no Quitexe, começou com avanços que eu fui rejeitando como pude. Às tantas, estava já com a mão pousada no meu joelho direito, agasalhando-se no escuro da noite do cinema. Fui-o sacudindo, enquanto pude resistir ao gargalhar da situação, até que não aguentei mais e abalei da sala de cinema, em passo rápido, fugindo rua abaixo, até ao meu quarto.
Mas fui visto por outro oficial, este do quadro, homem dos seus 50 e tal anos, que passeava a sua noite na avenida do Quitexe. E eu, que tinha que passar ao alcance dos olhos dele, corri, corri..., até que entrei no quarto, rapidamente me desfazendo das roupas femininas - aliás, facéis de arrumar!
Logo bateram à porta, de forma sôfrega e apressada: «Abra a porta, abra a porta...", gritava o oficial. Era ele. Abri, assim que pude, já em calções civis!
«Onde é que ela está?», perguntou ele, de olhos esgaseados e desconfiado.
«Ela, mas ela quem?!...», retorqui eu, já a morder-me de gozo, com o insólito da situação.
«A mulher, a mulher... onde é que ela está?...», insistiu o bom do oficial do quadro, a espreitar debaixo das camas e nos dois únicos armários do quarto, o meu e o do Xico Neto, sem dar por mulher nenhuma. E que, naturalmente, nunca encontrou.
A coisa era estranha para ele: então tinha ali entrado um mulher, vira-a ele com olhos que a terra lhe haveria de comer, e não a achava?!!! E nem ela poderia ter saído pela janela, que estava vedada com a rede mosquiteira. Como é que podia ser?
«Não está aqui mulher nenhuma, meu... », dizia eu.
E vasculhava o homem, sem a encontrar, o que lhe parecia de todo impossível. Ele tinha-a visto entrar, tinha de estar ali.
Ainda hoje julgo saber que o bom do oficial nunca desfez tal mistério.
- OFICIAIS: Sei bem os nomes dos dois oficiais em causa. Não cito o nomes, por razões óbvias e para evitar constrangimentos.
- MACHADO. Manuel Afonso Machado, furriel miliciano mecânico de armamento, natural de Covelo do Gerez (Montalegre) e residente em Braga.

terça-feira, 19 de maio de 2009

As cassetes de amor e juras para as namoradas de Portugal...

Furriéis Neto e Viegas no seu quarto do Quitexe
Os tempos mortos do Quitexe, que os havia!!!..., eram muitas vezes ocupados em gravações, chamávamos-lhe nós programas de rádio, gravações fartas de apaixonadas declarações de amor!
Eram declarações a metro, feitas de palavras sem fim e quentes, muito quentes, gravadas em fitas magnéticas embaladas em cassetes e que os Correios traziam para Portugal, embrulhadas em papel grávido de saudades - mas sem arder nas labaredas das paixões que medravam no calor angolano.
O meu quarto, que era o quarto do Xico Neto, era uma espécie de fórum dos cavaleiros que jornadeavam pelo Quitexe. Era um espaço de culto! Por lá cabiam todos! E alguns por lá iam, para fazermos as tais gravações!
E o que era isso, isso de gravações? Pois, com um velho gira-disco de agulha e um rádio-gravador, ou um gravador com leitura de cassetes e outro que as gravava, punhamo-nos para ali a debitar promessas e juras de amor às namoradas e mulheres que, no «puto», eram razão de afectos mais íntimos. Não por mim, fiquem todos avisados, que nem namorada tinha! Mas por outros que, roídos de saudades das namoradas, não sabiam como as matar (as saudades!, bem entendido!) - para além de lhes mandarem camiões de vagos e volúveis aerogramas, cheios de corações atravessados de setas de Cupido!
Bom, então era assim o guião: escolhiam-se os discos mais românticos e adequados à mensagem que se ia gravar. A tua namorada é isto, é aquilo, faz assim, faz assado, gosta disto e do quê, qual é o ponto fraco dela?!!! Ai ela é isso? Então, era aí que nós lhe «tocávamos» ao sentimento, em palavras quentes, volupiosas, lavradas com rigor e no momento exacto, enquanto se baixava e se subia o som na «mesa de mistura» improvisada.
As raparigas, com a cassete no regaço, corriam apressadas e em ânsias para irem ouvir a voz dos seus amados, nos seus segredos de quarto e atravesseirando-se de afectos, como se ali estivesse o dono daquela voz - o seu amor que estava na guerra!! Choravam de emoção e saudade, de alegria e de paixão!!! Era só amor!!!
Eu, que era irreverentemente atrevidote e meio lavrador de palavras, debitava prosa e versos de embalar corações, minha esta e minha aquela - às vezes com palavreado de fazer chorar as pedras das calçadas... - e lá "obrigava" os rapazes a confessar as suas perdas emocionais e a confirmar amores e juras, dizendo quantas vezes o que nem lhes passava pela cabeça.
As juras de amor eram tais e de tal maneira que, ouvidas em Portugal pelas cachopas, lhes provocavam verdadeiros apertos de coração, autênticos delírios vivos e volúpias que não se contam! Ai não!!!

Os rapazolas da foto são, somos, somos o Neto e eu: «Em directo, dos estúdios da Ráááááádio Quitexe, directamente para o Bééééééééco, em Águeeeeeeeda!... Para a Ni!!!!...».
Ainda há dias nos fartámos de rir, recapitulando estes dias radiofónicos dos jovens cavaleiros do norte angolano. E assim se iam passando os dias do Quitexe! A radiogravar promessas de namorados!!!

segunda-feira, 18 de maio de 2009

A estrada do café e o incêndio na arrecadação

O incêndio na arrecadação de material do Quitexe.
Foto de Francisco Neto, clicar para ampliar.
Entrada do Quitexe, do lado de Carmona .
Foto de Luís Fernando, jornalista angolano. Clicar, para ampliar.

O Quitexe era isto, da entrada de Carmona. À frente, logo à esquerda da casa verde, cortava-se para avenida principal (nova) e nessa transversal ficava a enfermaria militar. Os serviços militares, à excepção da quinta casa do lado esquerdo (a seguir à cor de rosa), funcionavam todos na avenida.
A ajuda de José Oliveira, do BCAV 1917 - que pelo Quitexe respirou saudades e pólvora entre 1967 e 1969 - permite-nos recordar a padaria civil do Tibúrcio, e por aí fora. Este arruamento correspondia à estrada que ligava Carmona a Luanda - a chamada estrada do café.
Agora, a história: a 17 de Janeiro de 1975 deflagrou um incêndio na casa a seguir à cor de rosa e que era onde estava instalada a arrecadação de material de aquartelamento e algumas munições e, se bem recordo, os quartos dos alferes milicianos. Foi um susto de todo o tamanho!
As labaredas celeremente «comeram» tudo o que lhe apareceu pela frente, sem dar muito tempo a que se deixassem combater. E havia a iminência do estouro de munições. Um perigo! Mortal!!! Apesar da pronta intervenção dos militares, a verdade é que, sem água que chegasse e sem bombeiros, não foi possível evitar a destruição do edifício.
Supostamente originado num curto circuito, o incêndio, vá lá..., ainda deu tempo a que os pertences pessoais dos militares fossem salvos, guardando-se da noite a imagem de camas, malas, roupa e outros equipamentos serem levados e pousados na rua, apressadamente! E a chegada, algo caricatural, de um carro de bombeiros de Carmona, que já nada vieram fazer. Não houve quaisquer danos pessoais.
A foto, a preto e branco (captada pelo furriel Neto) mostra dois militares, no rescaldo do fogo: um soldado (sentado) e o capitão Oliveira, à direita, de pé!
- CAPITÃO OLIVEIRA. António Martins de Oliveira, comandante da CCS da BCAV 8423. Natural de Viseu, residia em Ovar.

domingo, 17 de maio de 2009

O Bar do Rocha...

Bar do Rocha, na estrada princial do Quitexe

Bar do Rocha! Quantas saudades ali foram afogadas, em copos de cerveja, nocais, cucas e depois n´golas??!!! Ou, para os menos apreciadores de álcool, com os sabores das dussóis e das missions!! Quantos nomentos de nostalgia ali se sentiram e mataram, a troco de uma conversa de amigos, recordando os bons momentos do "puto" e da família, dos amigos, das namoradas, das mulheres e dos filhos, se os havia! Todos partilhando emoções fraternas, como se fôssemos todos irmãos de sangue!
O Bar do Rocha era um dos locais de culto das noites quentes do Quitexe! Numa delas, um GE, já adiantado em vapores alcoólicos, provocou uma cena bem desagradável, ameaçando um militar a tiro e granada. Felizmente tudo se resolveu, sem consequências, controlada que foi a situação, com mais ou menos facilidade! Havia, felizmente, disciplina e respeito, entre as hostes militares - apesar de, ao tempo, se registarem muitos incidentes em outras guarnições e principalmente na metrópole. Era já o PREC!
Se houve coisa que no Quitexe se viveu sempre - e em todo o Batalhão de Cavalaria 8423 - foi o respeito institucional e pessoal, sem que tivessem de se invocar regulamentos para que a família militar se estimasse e fosse solidária!
Mas eu falava do Bar do Rocha, lembrando as petiscadelas com que por lá nos lambuzávamos, satisfazendo o estômago e matando a sede dos nossos lutos dos cheiros e tempêros das nossas cozinhas de família.
Apetecia-me agora ir ao Rocha beber uma cuca! Ou uma nocal!
- GE. Grupos Especiais. Unidades operacionais africanas. Beneficiavam de treino militar e estavam organizadas como grupos de combate, estacionados junto às companhias do Exército, sob ordens das quais serviam. No Quitexe, estavam os GE 217 e 223. Em Aldeia Viçosa, a 222; o 208 em Vista Alegre.
- ROCHA. Bar do Rocha. A fotografia do dia 28 de Abril, com o Pais e o Emanuel, foi tirada lá dentro.
- PUTO. Como em Angola se denominava o Portugal Metropolitano.

sábado, 16 de maio de 2009

Um susto, ou uma emboscada...

Mercado de café, em Carmona (Uíge). Clicar, para ampliar

Um dos nossos mais vulgares serviços eram feitos às fazendas, dando protecção aos seus movimentos de viaturas, nomeadamente em tempo de colheita e venda de café - no mercado de Carmona (como se vê na foto, tirada da net). Iam-se dezenas e dezenas de quilómetros a engolir o pó das picadas, sempre de arma tensa e olho vivo, para repetir a viagem no sentido inverso! E, depois, de novo repetindo. No mesmo dia!
Não era fácil! Eram muitos, muitos quilómetros num só dia, por picadas sempre inseguras e nas quais cada dúvida ou ruído aumentavam os nossos medos. Uma vez, serpenteava a coluna por um monte quando avariou um unimog. Foi um susto!!! Maior susto ainda porque um militar viu um homem, aparentemente armado, por detrás de um penhasco. Reagimos, foram tomadas todas as acções de circunstância e uma equipa do pelotão avançou, lesta e corajosa, para um imediato «golpe de mão», se assim posso dizer - a equipa do 1º. cabo Cordeiro. E galgou o monte à direita da coluna. Estes momentos são de muita inquietação e exigem serenidade. E coragem!!! Nada viu a equipa, que foi e voltou, connosco todos em ansioso alerta, controlando emoções e respirando apressados para o que seria o nosso baptismo de guerra. E lá continuámos a missão - interrompida por uns bons três quartos de hora de tensão. Passámos neste local, nesse dia, mais três vezes e, não se ouvisse o roncar dos motores dos unimogs, diria eu que olhávamos aqueles penhascos em silêncio sepulcral! De cortar à faca!! De olhos e sentidos apurados!!!
Soubemos mais tarde, por um suposto membro da FNLA (supostamente integrante desse alegado grupo), que nos tinham emboscado e se preparavam para atacar, quando avariou a viatura. A reacção imediata do nosso grupo terá evitado males maiores. O sítio era propício a uma verdadeira flagelação - a uma carnificina. Quase bastaria, na verdade, que nos atacassem à pedrada.
- CORDEIRO: José Manuel de Jesus Cordeiro, 1º. cabo atirador de cavalaria, natural da região de Leiria.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

As «mulheres» e a Maria de Angola do Quitexe...

Os furriéis Miguel e Neto, ladeando Maria
de Angola, no Quitexe!
Mulheres é tema de sempre, onde estiver um homem. Ou dois, ou três!!! Eram motivo de enormes e infindáveis conversas e desejos, entre a gente que da Europa foi ao Quitexe fazer a tropa. As noites de luar da vila cavaleira eram invariavelmente «vestidas» da nudez que imaginávamos em cada fêmea que adivinhássemos nas fronteiras do nosso cio de machos latinos!
As noites tropicais, as nocais e cucas bebidas em exagero - uma noite foram 24!!!... - a sensualidade cor de ébano que se passeava na frente dos nossos olhos, o bombalear provocante das mulheres que passavam e saciavam nossos olhos de desejo, levaram a tropa a muitas histórias que aqui não se podem contar!
O ritmo dos batuques, as danças de gazela das mulheres negras de seios nus que espreitávamos nas sanzalas ou nas ruas mais cosmopolitas de Carmona, eram realidades que transportávamos para os nossos sonhos, eram lendas que efabulávamos em intermináveis noites que nos faziam arder de cio. E desejos!!!
A foto é uma «mentira». O Miguel e o Neto não estão a disputar a mesma mulher branca! Branca, ora vejam lá. O que parece até erótico, porventura pornográfico, quiçá sexual, dois jovens quase despidos a envolver uma mesma mulher, não passa de uma brincadeira de tropa. E eles, ao que parece, eram danados para a brincadeira!
A mulher do meio sou... eu!
- MIGUEL: Miguel Peres dos Santos, furriel páraquedista, em serviço na CCS do BCAV 8423. É de Setubal.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

O glorioso PELREC da CCS do BCAV 8423

Cavaleiros do Quitexe, em sorridente pose de «guerra»,
preparados para mais uma "saída". Clique na foto, para a ampliar

O glorioso Pelotão de Reconhecimento, Serviço e Informação (PELREC) do gloriosíssimo Batalhão de Cavalaria 8423, instalado na vila do Quitexe, norte de Angola. Tão diferente e tão plural, tão heterogéneo!!! Um pelotão de altos, baixos, magros e gordos, todos imensa e intensamente solidários. E vaidosos da sua competência militar!!! Eu assino por baixo!
Ora vejam lá quem eles eram, em cima, da esquerda para a direita, todos garbosos e muito corajosos: Cordeiro, Messejana, Pinto, Soares, António (?), Ezequiel, Marcos, Dionísio, Caixarias e Florindo (enfermeiro).
Em baixo, pela mesma ordem e também «armados até aos dentes», prontos para tudo: Vicente, Viegas, Francisco, Leal, Mendes (?, transmissões), Hipólito, Aurélio, Madaleno e Neto.
NOTA: O pelotão não está completo, saímos para mais um patrulhamento, e a foto é de 16 de Outubro de 1974. A pose sorridente tinha a ver com uma «boca» mandada pelo (furriel) Neto. Alguém nos pode confirmar as identidades?! Tenho dúvidas em duas.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

E o Quitexe, onde é, onde fica?!

E Quitexe fica no mapa?! Onde? Onde fica?! É um buraco?! A pergunta cirandou-se de boca em boca, entre nós - os cavaleiros que iam da revolução lisboeta e se suavam em bica do calor africano. Era a pergunta mais feita no campo militar do Grafanil, à saída de Luanda, antes de Viana!
Era a nossa grande ansiedade: para onde vamos? O que nos espera?! Quem está lá, como vai ser?
Em Santa Margarida chegara-me um «cheiro»: íamos para o norte de Angola. E devorei tudo o que pude ler, para antecipar o conhecimento da então província ultramarina. Em Maquela do Zombo tinha estado o Zé Ramiro, meu vizinho. Por Quitexe passara o Zé Pires, também vizinho. Em Sanza Pombo estava o Higino da ti Efigénia, daqui também mas civil. E havia a já então lendária Nambuangongo. O Quibaxe, Piri, sei lá.

Só em Luanda soubemos que o nosso destino era o Quitexe. E assustei-me. Tinha visto umas fotografias trágicas, de mulheres violadas e assasinadas, crianças mortas! À catanada e a tiro. Outra imagem de terror era a de cabeças de negros espetadas em paus. Em 1961, ano 1 da era emancipalista dos naturais, no terreno! E aqui não entro em pormenores. Mas isso tudo nos martelava na cabeça!
Conversei com amigos civis, em Luanda - que do Quitexe me pouparam algumas coisas que saberiam. E lá fomos: Cacuaco, Ucua, Dange, Vista Alegre, Aldeia Viçosa, Quitoque, Quimassabi, o que lembro mais!!
E a cidade mais perto? Carmona! E o que me disse Casares, furriel miliciano que de alguma maneira substituí nos GE: que tivesse cuidado, coisas que agora não conto! Lá chegámos, numas dez horas de viagem, ou mais, com paragens que deu para encontrar, num bar de Quibala, o conterrâneo Zé Taipeiro, aqui meu vizinho, a 80 metros de casa! E o Quitexe, afinal, foi uma boa surpresa!

terça-feira, 12 de maio de 2009

O Mosteias que era casado e foi pai...

Viegas e Mosteias, furriéis do Quitexe, à
entrada do edifício dos quartos.


O Mosteias era um gajo do caraças! O Mosteias era um gajo bom!! O Mosteias era um tipo que casava o impulso com a razão, misturando-as e reagindo-as numa doce partilha de amizade e camaradagem. O Mosteias era um portento de força física, praticante de halteres improvisados e dono de imponente figura. Era o mais alto, o mais pesado, o mais calmo, o mais bonacheirão, o melhor de todos nós numa série de coisas. Sapador de infantaria, era o gajo das minas e armadilhas!!! Ele, o montijense Cândido Pires e o amarantino Farinhas! Um trio muito singular!
O Mosteias era único furriel miliciano casado de toda a CCS. O que lhe dava uma auréola muito especial, entre todos nós, quando falávamos pela noite dentro, olhando a lua avermelhada dos céus africanos e sentindo os cheiros de cio de Angola, contando e ouvindo histórias, entre um gole de cerveja, um trago de wisky, ou simplesmente a endeusar as nossas irreverências de juventude, delas fazendo lendas e maioridades!!! A quietude bonançosa das noites do Quitexe dava para tudo, embrulhando-nos de emoções! E falasse-se de saudades!! Aí, aí... então aí ficávamos todos a olhar e a medir as estrelas no céu angolano e a antecipar sonhos das próximas horas de sono! A sonhar não digo com quê!!!
Não consta que o Mosteias alguma vez tenha usado a sua instrução militar especializada, em qualquer picada ou trilho da zona cafeeira de Angola por onde «vagabundeávamos» em patrulhamentos e operações. E ainda bem!!!! Sinal de que não havia perigos!!!

Divertia-se e ansiava-se ele, no dia a dia, era com o sonho e a expectativa de receber da mulher grávida a notícia de que já era pai!!
Tivera uma curiosa história, a do seu casamento com Leonor, filha do patrão, que era despachante oficial em Lisboa. História que ele contava com com indisfarçável gozo e felicidade!!: «Olhe, amanhã vou casar-me com a sua filha. Se quiser ir, é na Conservatória tal....».
- «Ó Mosteias e foi mesmo assim?!!...», perguntávamos nós, sempre de sorriso afiado! Para sempre ouvirmos a mesma história, contada com felicidade que não se contava em quilómetros. «Ó Mosteias, já te viste com a criança no colo?!... », respingávamos-lhe nós, rapazes na irreverência dos nossos 21/22/23 anos, para o provocar, em sorriso de refinada malícia, sugerindo-lhe o cofiar dos anéis dos cabelos da criança, o tocar-lhe a pele macia, dar-lhe o biberon, mudar-lhe as fraldas.
O Mosteias olhávamos com supremo desdém, de sorriso cúmplice, como se não houvesse no mundo pessoa mais feliz que ele. Um dia alguém lhe leu um poema: «Pai, o teu Natal é longe de mim/A mãe pousa as mãos no ventre/E sinto-lhe saudades sem fim/Porque me sente/Filho de ti!!!....". Qualquer coisa parecida com isto.
«Ó pá, mariquices, pá...», balbuciou ele. E riu-se, riu-se, riu-se! E saiu de ao pé de nós!
Não sei porquê, mas sempre tive a ideia de foi chorar para o quarto.
Dias depois, era pai!! E veio a Lisboa conhecer a criança!
- MOSTEIAS: Luís João Ramalho Mosteias, furriel miliciano sapador de infantaria. Mora em Sines. O filho seguiu a carreira da actor.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

O Papélino do Quitexe, que era Agostinho, ou talvez não...

Furriéis Farinhas, Neto e Viegas. O Papélino
fazia que engraxava os meus sapatos

Chegou-me um delicioso e emotivo comentário sobre o Papélino, o Agostinho Papélino, engraxador oficial do Quitexe, corneteiro oficial do Quitexe! Ou mangueiro oficial do Quitexe?!! Ele corneteava os toques militares com uma magueira de jardim! E era o nosso mascote!! Era?!
Quem nos escreveu, assinando (digo eu) a primeira crónica inter-activa deste blogue, é Casal, ex-militar do Quitexe, que começa por frisar que«muita coisa haveria para contar sobre o Agostinho!». E diz ele:
«Sempre que falo de África menciono o seu nome. Viveu tempos muito dramáticos. Conheci-o quando o livrei de uma quase bárbara agressão, após ter conseguido comida no quartel. Levava-o comigo ao Topete e ainda vejo os seus olhos mirar o "prego". A carne era maior que o pão e não sabia bem por onde começar! O dono da casa ousou um dia fazer reticências e foi aí que estalou o verniz! Tudo se esclareceu e até ficámos amigos... ou quase! No dia seguinte, era chamado ao capitão, mercê da pressão exercida pelo então meu amigo ex-alferes Serpa. Foi o comandante quem, ao ouvir a conversa, não lhe atribuíu qualquer valor e acabou com o assunto ali mesmo. O mais importante é que o "enguia" continuava a ir ao Topete deliciar-se com a comida, acompanhada por uma "mission" de maçã. Durante um ano e quase todos os domingos me engraxava um par de sapatos que eu nunca calcei, mas que ele afirmava peremptoriamente estarem necessitados de cuidados. Eu nunca lhe disse nada, mas num dos seus raros momentos de distração constatei que usava pomada duma caixa...vazia!Dei-lhe uma caixa nova mas duvido que a tenha usado em meu proveito. Talvez tenha servido para cativar clientes na Companhia que me foi render. Durante um ano, o "enguia" esteve protegido mas o dia 26 de Abril de 1973 tinha chegado. Às seis da manhã, lá estava ele à minha espera para se despedir. Olhos no chão e um nó na garganta, igual ao que ainda hoje sinto quando falo dele. Oxalá seja hoje hoje um adulto realizado. - Casal»

NOTA CV: O Papélino era isso mesmo, não faria eu melhor a caricatura viva que lhe foi feita por Casal. Engraçado como tudo o que descreve se repetiu um ano depois e meses seguintes: comigo, com o Neto, o Farinhas (todos na foto). E outros «cavaleiros» do Quitexe. Até o prego no Topete e a Mission meia fresca - bebida de que francamente já não me lembrava! E o faz que engraxa mas não engraxa; até a oferta de uma caixa de graxa!
Dele, sempre me ficou uma dúvida: se ele não passava informações para o IN. Perguntei-lhe e sempre negou, mesmo quando o confrontei com uma situação concreta. Aparentemente, ele não se chamaria Agostinho, mas talvez Francisco Caiango, ou Augusto Cacongo! Ou outro nome qualquer! Era uma criança grande, muito esperto, mais que inteligente; sagaz, mais que o que dava a entender. Dele, recordo a última palavra, a 2 de Março de 1975: «Leva-me nos puto, esfurrié...».
Nem eu nem o Neto lhe respondemos. Passei-lhe eu a mão na carapinha e não disse uma palavra, dei-lhe 20 angolares! Fugiu com eles embrulhados na mão, a correr, e ficou atrás das plantas da messe de oficiais que ia ser abandonada, a ver-nos partir para Carmona.
Lá me procurou, no BC12, algum tempo depois!
- FARINHAS: Joaquim Augusto Loio Farinhas, furriel miliciano sapador, de Amarante. Esteve nos Estados Unidos e regressou.

domingo, 10 de maio de 2009

A Noite de Natal de 1974


O Quitexe, visto da capela. Clique, para ampliar a foto.

A foto é do Quitexe, vila onde estava a CCS do BCAV 8423, tirada a partir a capela, vendo-se parte das instalações militares.
Vê-se claramente o telhado do refeitório, a cobertura mais à direita - onde tanto se refeiçoou com as saudades da sopa e do arroz de galinha da mãe. Ou do bacalhau com todos, um peixe frito, uma rojoada.
A noite de Natal de 1974, estava eu de serviço (sargento de dia), foi das mais emocionantes de toda a comissão de 15 meses. Comeram-se rojões e bacalhau, refeiçoando juntos oficiais, sargentos e praças - precisamente no refeitório. O capitão Oliveira, que não era homem de muitas falas, falou ao pessoal, algo emocionado e em frase curta. A família dele - mulher, filha e neto - morava a poucos metros, certamente estava ao ouvir!
Eu estava de serviço e tinha «instruções» para relaxar alguns eventuais exageros. Sem flexibilizar a necessária a segurança. Assim aconteceu! Por volta da meia noite, passei - eu, com o Madaleno e o Marcos... - por todos os postos, levando cachaça, vinho, cerveja e wiskyes aos sentinelas. Nenhum deles dormiu nessa noite. Quiseram, mais ou menos ensonados, partilhá-la irmamente, dividindo as bebidas com bacalhau cru. Nenhum deles «abusou». A noite de saudades e de nascimento foi partilhada com amor e solidariedade!
- OLIVEIRA. António Martins Oliveira, capitão SGE, comandante da CCS. Tinha sido aluno da Escola Central de Sargentos, em Águeda, e tinha comigo e com o Neto uma relação menos boa! Julgo que por sermos de Águeda. Encontrei-o nos anos 80, em Aveiro, já como major, era o responsável pelo DRM (Distrito de Recrutamento Militar). Morava em Ovar.
- MADALENO: Francisco José Matos Madaleno, soldado atirador de cavalaria, da Covilhã.
- MARCOS. João Manuel Lopes Marcos, soldado atirador de cavalaria, do Pego (Abrantes).
Foto de José Oliveira, do BVAC 1917.